A
maravilha, o assombro e o espanto estão no cerne do empreendimento literário.
Arthur C. Clarke é um autor que não deixa esquecer disso: uma de suas
especialidades é nos deslumbrar com máquinas colossais. Ocupou-se do malfadado
Titanic, assunto de O Fantasma das Grandes Banquisas; idealizou naves espaciais
gigantescas, como a alienígena Rama; concebeu uma cidade inteira
autossuficiente e mecanizada, Diaspar, em A Cidade e as Estrelas. O monolito
negro de 2001: Uma Odisseia no Espaço e sequencias talvez seja a criação
suprema do autor nesse sentido (se o monolito não é colossal em suas dimensões,
o é em suas implicações). As tramas muitas vezes são construídas a partir
destes aparatos e do que pode dar errado com eles, como é o caso em As Fontes
do Paraíso, obra que poderia ser resumida assim: “elevador espacial custa a
vida de seu criador”.
As
Canções da Terra Distante não é exceção: o imensurável é parte importante desse
livro em que o mar, outro tema caro a Clarke, está também presente. Nesse obra,
em particular, não há uma maravilha tecnológica que sirva como carro-chefe: há
muitas! Clarke não parece muito seguro do efeito de suas criações sobre o
leitor, e assim inclui continuamente descrições de como essas maravilhas
deveriam impactá-lo. Por exemplo, além de descrever em termos grandiloquentes
os efeitos pirotécnicos do “ramjato quântico” da nave estelar Magalhães na
atmosfera de Thalassa, descreve também como os habitantes locais reagiram, quão
emocionante foi, e assim por diante. Mas confesso nesse caso o kitsch não me
incomoda tanto assim. A grande variedade temática presente neste livro permite
que o autor se pronuncie, alegadamente em nome da ciência, sobre uma ampla
variedade de tópicos. É leitura muito interessante, senão como literatura, como
documento do cientificismo.
O
tema principal é o encontro entre as pessoas de Thalassa, uma comunidade humana
até então isolada, e a tripulação da nave Magalhães, representante do tronco
principal da humanidade. O detalhe é que a colonização de Thalassa deu-se
através de uma semeadora automática, em um processo que permitiu que toda a
sorte de ideias consideradas “perigosas” fosse expurgadas da cultura
local. Uma vez que todas as referências
ao ciúme foram expurgadas da literatura, ninguém o conhece, e o planeta tem uma
vida sexual florida. Como nunca ouviram falar de guerra, nunca a descobriram, e
o planeta é pacífico. Como nunca ouviram falar de Deus, não tem religião, e
assim por diante... Temos uma sociedade “perfeita”.
Chegou
o momento de confrontarmos o autor. Há uma espécie de prefácio à obra em que
Clarke esclarece o seu leitor de que ele tem mãos uma obra verdadeira de FC,
bem fundamentada, e não um exemplar inferior do gênero como Star Trek ou Star
Wars (esses são exemplos citados por Clarke!). Pois bem: a censura cultural
imposta em Thalassa é defendida com o argumento de que apenas uma pequena
percentagem do comportamento humano é determinada pela biologia, e a cultura
seria o ponto chave. Ora: de onde ele tirou essa informação? Pois, como vem
sendo abundantemente demostrado, cultura é biologia. Mr. Clarke, onde está a evidência de um bom
“reset” cultural é a solução para os problemas humanos? Há entusiastas da hard science que não enxergam para além
das ciências ditas exatas, frisando sempre que podem que o som não se propaga
no vácuo e que as explosões nas batalhas espaciais deveriam ser silenciosas,
mas desconhecendo amplamente os saberes das ciências sociais e biológicas.
A
leitura de As Canções da Terra Distante evocou-me ainda Theodor Adorno,
justamente um pensador social, e seu artigo Bach
defended against his devotees. Não creio que tenha sido traduzido para o
português, mas uma das ideias deste texto é que a idolatria em torno de Bach
(bem como em torno de outros “clássicos” da música) teria como efeito impedir o
reconhecimento do trabalho de compositores posteriores. Pois bem: de acordo com
Clarke, mesmo depois do ano 4.000 D.C. Bach e Beethoven ainda serão
reconhecidos como os maiores compositores de todos os tempos e todos os lugares
do universo conhecido. Parece que Adorno
tinha razão, afinal...
Essas
críticas mal-humoradas não representam, de forma alguma, uma condenação do
livro que inspira essas linhas. Como já adiantei, a multiplicidade de temas
torna-o, em minha opinião, leitura muito aprazível, embora menos profundo que
outros livros de Clarke. Muitas críticas do autor atingem muito bem os seus
alvos, e há passagens extremamente divertidas, como a descrição da seita
gnóstica dos Neo-Maniches, que amparava sua argumentação com Teologia
Estatística. Clarke é um dos autores do
“centro” da FC, nos termos que tenho discutido por aqui, e um futurologista
dotado quando se trata de antecipação de tecnologias.
Tem a ver:
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