Ah, entranhas minhas, entranhas minhas! Estou com dores no meu coração!
O meu coração se agita em mim. Não posso me calar; porque tu, ó minha alma,
ouviste o som da trombeta e o alarido da guerra.
Jeremias 4:19
Toda a vez que vejo o nome Philip K. Dick em alguma enumeração dos
grandes da FC, lado a lado com Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, não consigo
evitar um momento de estranheza. Claro está que PKD é um dos grandes, mas os
seus livros parecem estar em uma categoria distinta. Para começar, comparemos o
sentimento evocado pela experiência da leitura em si. Asimov, Clarke e afins:
edificante entretenimento. PKD: algo como um chute no estômago.
Exagero? Possivelmente, mas vejamos: três fatores concorreram para que
eu finalmente me decidisse a adquirir e ler Fluam, minhas lágrimas,
disse o policial. Um preço imperdível (usado, edição da Aleph, 2013); a
irresistível referência, já no título, à canção de John Dowland; e curiosidade
pelo resultado de um novo embate com PKD. Sim, eu confesso: passei os últimos
anos evitando os livros deste senhor.
Ora, esta minha atitude nada teve a ver com os alegados problemas na
maneira como PKD conta suas estórias. De certo ponto de vista, o desfecho
de Fluam... é realmente fraco, parece não dar conta das
complexidades do enredo. Mas tenhamos em mente que este autor questiona
continuamente a realidade, nela descobrindo camadas e camadas de ilusão (nesse
desvelar, seus personagens por vezes contam com uma “forcinha” de drogas
psicoativas). As obras de PKD tem parentesco com o mundo dos sonhos e
alucinações. Quem espera “coerência” de um pesadelo? Não iremos encontrar em
PKD cadeias cristalinas de causas e efeitos (ao contrário do que ocorre na
narrativa de FC standard).
Por vezes lemos por aí artigos em que os méritos de diferentes autores e
obras de FC são avaliados a partir do número de gadgets descritos
que efetivamente vieram a ser produzidos. Antecipar geringonças definitivamente
não é o forte de PKD. Mesmo assim, se fosse o caso de eleger o grande profeta
da FC, este seria, em minha opinião, PKD. Vivemos no futuro imaginado por ele.
Mesmo que os nossos aparatos tenham sido antecipados por outros autores, nossas
atitudes em relação à vida e à tecnologia são aquelas dos personagens
destrambelhados de PKD. E é justamente por isso que me afastei de sua obra!
Quem deseja ser lembrado, ou convencido, de que vive em uma distopia? Para
piorar, esta última obra que inventei de ler mostrou-se ainda mais perturbadora
que as demais. Pois retrata um estado policial sem rebuços, escancarado, que
fomenta uma cultura baseada na traição, delação e paranoia. Quem ousa duvidar
que acabaremos por chegar lá?
Uma breve digressão. Sim, a literatura de ficção-científica é sexista.
Como comentei em outro post, há muitas obras de FC que já se
mostram pouco legíveis para o leitor contemporâneo. Há muitos fatores
envolvidos nessa obsolescência, mas o fato de nossa sensibilidade contemporânea
não mais aceitar personagens femininos estereotipados e irrelevantes não é o
menor deles. Em muitas dessas obras, se as personagens femininas desaparecem,
pouco mudaria.
Pois bem: esse não é o caso de Fluam.... Mulheres são
essenciais na trama. Mas há algo que não escapará ao leitor atento: o pesado
jargão psiquiátrico de PKD é exclusivamente dedicado às personagens
femininas. São psicóticas, hebefrênicas, ninfomanícas e por aí afora. Os personagens masculinos recebem eventualmente adjetivos de depreciação moral, mas os diagnósticos são reservados às mulheres. A
partir dessa perspectiva podemos produzir uma síntese um tanto cínica da obra:
um homem, ao defrontar-se com uma grave dificuldade, recorre a várias mulheres
em busca de alguma solução. Como todas as mulheres do mundo são desequilibradas, resta a esse homem empregar seu charme irresistível para melhor tirar proveito das vulnerabilidades
psicológicas de cada uma delas... Eis a misoginia phildickiana!
Seja como for, Fluam... alinha-se muito bem no universo
de PKD. Sim, um futuro tecnológico está sobre nós: mas e se ele for
tão vazio de sentido ou pavoroso que não nos reste alternativa além da negação
da própria realidade?
Tem a ver:
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