segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A PROPÓSITO DE MARUNE: ALASTOR 933, DE JACK VANCE

 

            Finalmente, algumas linhas sobre Jack Vance (1916 – 2013), de cuja obra Star King o título do blog, “Taverna de Smade”, foi extraído. E como é estranho aportar na obra de Jack Vance após um mergulho pelo universo de Jornada de Estrelas! Pois este último trata de um projeto utópico de formação de uma grande comunidade regida por princípios comuns, enquanto o primeiro rejeita a possibilidade de tais princípios, deleitando-se em explorar cenários em que prevalecem tensões entre comunidades (ou indivíduos) de concepções epistemológicas incompatíveis.

            A apreciação convencional de Jack Vance passa necessariamente por sua linguagem apurada e singular, carregada de “vancismos”. Naturalmente, os que leem Vance em português, como eu mesmo, não estão em condições de apreciar completamente este ponto. Outra maneira de caracterizar o autor tem sido a partir do sabor antropológico de seus escritos, no que por vezes vem sendo comparado a Ursula Le Guin.




Note-se que Le Guin é um sucesso de público e Vance um autor perfeitamente obscuro. Nos episódios da terceira temporada de Star Trek Discovery aparece uma nave batizada Le Guin, em uma clara (e merecida) homenagem à escritora. Curiosamente, há nestes mesmos episódios um certo Almirante Vance, mas aparentemente por puro acaso, sem qualquer intenção de homenagem. Claro, pela razão que aludi acima, não há de fato homenagens a serem feitas a Jack Vance por parte de Star Trek. Mas não se preocupe, caro leitor: Neil Gaiman e George R. R. Martin são apenas dois dos autores que reconhecem sua dívida para com Vance. Homenagens não faltam!

Retomemos, por um instante, a narrativa básica da modernidade no ocidente, que poderia ser sintetizada assim: os valores ditos civilizados vão se expandindo pelo planeta (e quiçá pelo cosmos!) em um processo conhecido como “progresso”. Cabe aos “nativos” de diferentes partes do planeta (ou do universo) adotarem esses valores, abandonando seu “primitivismo” e integrando-se na grande comunidade mundial (ou galáctica). Implícito está, neste esquema, a concepção de que os valores ditos civilizados são, de alguma forma, "superiores" .

Como venho argumentando, lidar com esse esquema é dos grandes desafios da FC. Em Star Trek, a Federação é o utópico caminho a seguir. Isaac Asimov, na série Fundação, aposta primeiro no Segundo Império Galáctico e depois em Gaia, a Galáxia Viva. Le Guin problematiza amplamente a questão e frequentemente prefere adotar o ponto de vista dos nativos, dos colonizados, questionando concepções rasas de progresso (veja-se Floresta é o nome do mundo, por exemplo). Jack Vance, ao contrário de todos eles, rejeita quaisquer compromissos teleológicos, sejam quais forem. Se adota algum ponto de vista, é o de seu personagem principal, tão somente. 

Vejamos, por exemplo, Marune: Alastor 933 (Ed. Francisco Alves, 1988), obra que inspira este texto. Pode ser resumida como o relato da busca de um homem por uma identidade e por um sentido na vida. O que ele encontra? As últimas frases do livro são um simples diálogo entre esse homem, Efraim, que é um típico "heroi" vanciano, e sua companheira: 

-"Então o que faremos?"

-"Não sei".

-"Também não".

Não conheço nenhum outro autor que ouse terminar assim suas histórias! Algo semelhante ocorre ao final da série A Saga dos Príncipes Demônios, em que encontramos um outro protagonista vanciano, Kirth Gersen, descobrindo, ao término de suas aventuras, que não mais dispõe de uma meta abrangente para guiar sua existência, apesar de seus consideráveis recursos pessoais. 

A concepção de um ser humano individual (ou de uma comunidade) cujas motivações não estejam à sombra de Kant ou Hegel é de difícil aceitação. Todos vivemos mais ou menos à sombra dos ideais racionalistas do iluminismo, e é por isso mesmo que alguns fãs de Jack Vance especulam que Kirth Gersen, após as aventuras vividas nos cinco volumes da Saga..., teria se tornado uma espécie de governante galáctico, o primeiro Connatic. Como é confortável postular que Gersen finalmente tenha posto sua existência a serviço de uma causa mais nobre ou construtiva do que a simples vingança pessoal! Entretanto, é raro que os protagonistas vancianos estejam dispostos disposto a guiar sua vida por racionalismos idealismos, moralidades, princípios abstratos universais ou pela busca do poder em si mesmo. Esse tipo de fixação é reservada aos antagonistas! É também inadequado apresentar Vance como um paladino da Liberdade. Nenhum dos protagonistas vancianos típicos daria sua vida pela liberdade pelo simples fato de que não estariam aptos a exercê-la depois de mortos. Claro que Vance de vez em quando faz diferente, como em Enfírio (Galeria Panorama, 1972), obra em que adota um tom invulgarmente sério. 

Marune é como se chama o planeta de número 933 do agrupamento de Alastor, composto por mais de três mil mundos. Um certo grupo de humanos descobriu em Marune criaturas “semi-inteligentes”, os fwai-chi, e logo se puseram a combatê-los e expulsá-los de suas terras ancestrais. O XVI Connatic da Dinastia Idite interviu severamente e proibiu em definitivo o porte de armas desse grupo de humanos, que foi confinado a certas áreas do planeta. Foi instaurada, assim, ampla proteção aos nativos. Em nenhum o momento da trama os fwai-chi são apresentados como compreensíveis: suas motivações, interesses etc. não chegam a ser plenamente revelados para o leitor, e pela simples razão de não ser possível fazê-lo. Os fwai-chi não veem qualquer sentido nas ações humanas e não desejam contato. Está implícito que os humanos, igualmente, seriam incapazes de compreender os fwai-chi.

Claro, os fwai-chi não são humanos (ou sequer “humanoides”).  São descendentes de uma árvore biológica distinta.  Desenvolveram suas capacidades cognitivas em um ambiente extraterrestre, e não há qualquer razão para supor que conceitos destinados a descrever aspectos da cognição humana, como o de inteligência, sejam aplicáveis aos fwai-chi. Vance, em várias obras, discute a impossibilidade de generalizar conceitos psicológicos (ou mesmo morais) para culturas humanas distintas ou para espécies inteligentes distintas. 

Não encontraremos, nas obras deste autor, qualquer legitimação para integrar os “nativos” na sociedade dita civilizada. Não há cultura "superior" e "inferior". A substituição de configurações sociais ditas "arcaicas" por outras ditas "modernas" não é necessariamente uma vitória do progresso. Muitas vezes, o que se depreende é que qualquer intercâmbio cultural seria por definição impossível pela intransponibilidade dos referentes. Aliás, Vance não se furta a usar expressões rebuscadas como "intransponibilidade dos referentes", tendo o cuidado de colocá-las na boca de personagens tão eruditos quanto truculentos. Ironicamente, muitas obras de Vance tem um sabor antropológico precisamente porque questionam própria possibilidade da antropologia. 

 O Agrupamento de Alastor, que talvez seja a criação mais próxima de uma utopia a sair da pena de Vance, consiste em um aglomerado de planetas de riqueza cultural infinita. Não há uma cultura universalmente dominante, e não há absolutos epistemológicos. Tentativas de vir a impô-los são severamente punidas por pelo Connatic vigente. Trata-se de um monarca cuja função, ao invés de ser a de reforçar uma episteme dominante, é a de preservar a diversidade das visões de mundo.  E se os seres humanos eventualmente encontrarem "outros" nas vastidões do espaço, para Vance a única ação possível seria a de delimitar claramente áreas de influência e deixar assim (como ele mesmo retrata em Detetive Galáctico, que saiu pela coleção Argonauta em 1984).

Jack Vance é, afinal, um relativista um tanto pedante. Normalmente, não encontraremos em seus escritos intenções "educativas", no sentido de elucidar princípios científicos aos leitor (como fazia Asimov, por exemplo), e nem uma "moral da história" unívoca.  Uma exceção é Ópera Interplanetária, livro cômico em que Vance explica princípios de teoria musical e que tem, sim, uma mensagem clara: "a música não é uma linguagem universal!".  Mas, de forma geral, sua obra admite sempre muitas interpretações. É possível ler seus escritos como se fossem uma forma de cautionary tale a respeito dos perigos do abandono dos valores humanistas, assim como é possível tomá-lo por um defensor de alguma forma extremada de individualismo. Por trás dessas ambiguidades, está um escritor muito ligado às raízes pulp da FC que não teme lançar mão dos clichês da space opera e da fantasia de forma criativa e renovada.

Em obras recentes como O Fim do Império Cognitivo - A afirmação das epistemologias do sul (2018), o filósofo português Boaventura de Souza Santos trata justamente da diversidade epistemológica em nosso planeta, observando que o imperialismo consiste também em uma forma de coerção epistêmica. Mas e como ficam saberes científicos? Não são universais? Eis o tipo de discussão que a obra de Boaventura trava com a de Vance. A grande questão é que, no maravilhoso universo literário vanciano, se um grupo de pessoas acredita em magia, a magia existirá. Já quanto ao mundo "real"... Quem sabe?

 

Tem a ver:

Obras de Jack Vance em português 

A propósito de Heinlein e da FC

 

4 comentários:

  1. Vance foi um dos escritores que mais gostei de ler quando jovem. Lia seus livros das traduções no português de Portugal, mas mesmo assim eram fantásticos.

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    1. É uma pena que tão pouco da obra dele esteja disponível em português! Sim, tem algumas, como "As Linguagens de Pao", que só pela Argonauta mesmo...

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  2. quando acabaram todos os livros do Vance em portugues eu me obriguei a ler em ingles. peguei um dicionário e o The Planet of Adventure e fiquei séculos traduzindo. eventualmente eu consegui. Melhor motivação para aprender um idioma.

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    1. Fiz isso mesmo com os volumes finais dos Príncipes-Demônios. Mas tá faltando coragem para The Planet of Adventure!

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