sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

NOTAS DE UM MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS

Do “Aprendiz de Avatar”, no Pergaminho da Nona Dimensão: Inteligência?, perguntou Marmaduke num dos intervalos permitidos, quando acompanhava a EMINÊNCIA no parapeito. O que é inteligência? Ora, respondeu a EMINÊNCIA, não é mais do que uma ocupação humana, uma atividade a que os homens aplicam seus cérebros, como uma rã agita as pernas para nadar: é um padrão que os homens em seu egoísmo usam para medir outras e talvez mais nobres raças, que ficam assim confundidas.

Jack Vance, Star King

              
Minha primeira tentativa de aproximação do Guia do Mochileiro das Galáxias não me trouxe diversão alguma. Como o livro vinha sendo saudado como irreverente e engraçadíssimo, senti-me um tanto decepcionado. Pelo menos com “irreverente” eu concordava, em certo sentido: a obra não mostrava qualquer reverência para com as minhas crenças sobre FC. Eventualmente, superei o fundamentalismo nerd e consegui aproveitar minha excursão pelo universo caótico de Douglas Adams. Cheguei mesmo a rir um pouco no processo. Mas era um riso contido, temperado pela ironia. O Guia não é livro para gargalhadas.
De fato, irreverência é uma boa palavra para o Guia e suas continuações, e o seu principal alvo é uma certa maneira entender o cosmos e nosso lugar nele, maneira essa da qual a FC em geral é cúmplice.  De acordo com essa visão, “o universo não passa de um clube para o homo sapiens” (os iniciados reconhecerão a paráfrase). O geocentrismo pode estar superado como teoria cosmológica, mas seu espectro persiste. Para exorcizá-lo, Adams destrói a Terra logo nas primeiras páginas. Tal destruição não se dá em uma batalha épica ou algo do gênero. Pelo contrário, torna-se evidente que o nosso planetinha não faz lá muita falta no universo, e os seres humanos menos ainda.
Comparemos com o universo das histórias de Asimov. Nele, a Terra também sucumbe, e chega mesmo a ser esquecida, mas os humanos florescem e colonizam a galáxia. Um de seus personagens justifica a expansão do homo sapiens (que se dá às expensas de outras formas de vida) com o mote “o universo pertence à inteligência”. Como humanos são os únicos inteligentes, a eles pertence o cosmos. Mas e se os seres humanos não souberem reconhecer a inteligência por serem eles mesmos estúpidos? No universo de Adams, é exatamente o caso, e são os golfinhos que sobrevivem à destruição da Terra... por serem mais inteligentes. 
O psicólogo Steven Pinker vai mais longe: como inteligência é um conceito criado por humanos para avaliar humanos, não é aplicável a outras espécies. Sendo assim, o projeto SETI, que busca inteligência extraterrestre, simplesmente não faz sentido. Para Pinker, o poder de persuasão de uma proposta como o SETI ampara-se em doutrinas amplamente difundidas como a da “Grande Cadeia do Ser”, formadas por resquícios de dogmatismo religioso, ideais de progresso e toda a sorte de aspirações da modernidade. Naturalmente, nessa cadeia os humanos estão relativamente bem posicionados, abaixo de Deus mas certamente acima dos golfinhos. 
O homem contemporâneo não se limita a estabelecer a si mesmo como o paradigma universal de inteligência. Vai além, e pretende também encontrar no universo um reflexo de suas concepções sobre simetria, beleza e sentido, mesmo que a natureza, como aponta o físico Marcelo Gleiser, venha resistindo a tais pretensões. Continuamos a nos ressentir quando o cosmos nos é apresentado como imperfeito, acidental ou sem um propósito discernível. A menos, naturalmente, que estejamos convencidos de que se trata de uma brincadeira, de que o autor de semelhante descrição não pretenda insinuar que o universo seja de fato absurdo. Chegamos inclusive a nos convencer de que em algum momento aquela sequencia estapafúrdia de eventos será finalmente amarrada em um enredo irresistível e bem-acabado, sem “pontas soltas”. E se isso não acontecer, diremos que a obra é divertida, mas ela mesma imperfeita. Afinal, não é assim que avaliamos o Guia do Mochileiro das Galáxias?
 
Tem a ver:

Nenhum comentário:

Postar um comentário