Do “Aprendiz de Avatar”, no Pergaminho
da Nona Dimensão: Inteligência?, perguntou Marmaduke num dos intervalos
permitidos, quando acompanhava a EMINÊNCIA no parapeito. O que é inteligência?
Ora, respondeu a EMINÊNCIA, não é mais do que uma ocupação humana, uma
atividade a que os homens aplicam seus cérebros, como uma rã agita as pernas
para nadar: é um padrão que os homens em seu egoísmo usam para medir outras e
talvez mais nobres raças, que ficam assim confundidas.
Jack Vance, Star King
Minha
primeira tentativa de aproximação do Guia do Mochileiro das Galáxias não me
trouxe diversão alguma. Como o livro vinha sendo saudado como irreverente e
engraçadíssimo, senti-me um tanto decepcionado. Pelo menos com “irreverente” eu
concordava, em certo sentido: a obra não mostrava qualquer reverência para com
as minhas crenças sobre FC. Eventualmente, superei o fundamentalismo nerd e
consegui aproveitar minha excursão pelo universo caótico de Douglas Adams.
Cheguei mesmo a rir um pouco no processo. Mas era um riso contido, temperado
pela ironia. O Guia não é livro para gargalhadas.
De
fato, irreverência é uma boa palavra para o Guia e suas continuações, e o seu
principal alvo é uma certa maneira entender o cosmos e nosso lugar nele,
maneira essa da qual a FC em geral é cúmplice.
De acordo com essa visão, “o universo não passa de um clube para o homo
sapiens” (os iniciados reconhecerão a paráfrase). O geocentrismo pode estar
superado como teoria cosmológica, mas seu espectro persiste. Para exorcizá-lo,
Adams destrói a Terra logo nas primeiras páginas. Tal destruição não se dá em
uma batalha épica ou algo do gênero. Pelo contrário, torna-se evidente que o
nosso planetinha não faz lá muita falta no universo, e os seres humanos menos
ainda.
Comparemos
com o universo das histórias de Asimov. Nele, a Terra também sucumbe, e chega
mesmo a ser esquecida, mas os humanos florescem e colonizam a galáxia. Um de
seus personagens justifica a expansão do homo sapiens (que se dá às expensas de
outras formas de vida) com o mote “o universo pertence à inteligência”. Como
humanos são os únicos inteligentes, a eles pertence o cosmos. Mas e se os seres
humanos não souberem reconhecer a inteligência por serem eles mesmos estúpidos?
No universo de Adams, é exatamente o caso, e são os golfinhos que sobrevivem à
destruição da Terra... por serem mais inteligentes.
O
psicólogo Steven Pinker vai mais longe: como inteligência é um conceito criado
por humanos para avaliar humanos, não é aplicável a outras espécies. Sendo
assim, o projeto SETI, que busca inteligência extraterrestre, simplesmente não
faz sentido. Para Pinker, o poder de persuasão de uma proposta como o SETI ampara-se em doutrinas amplamente
difundidas como a da “Grande Cadeia do Ser”, formadas por resquícios de
dogmatismo religioso, ideais de progresso e toda a sorte de aspirações da
modernidade. Naturalmente, nessa cadeia os humanos estão relativamente bem posicionados, abaixo de Deus mas certamente acima dos golfinhos.
O homem contemporâneo não se limita a estabelecer a si mesmo como o paradigma universal de
inteligência. Vai além, e pretende também encontrar no universo um reflexo de suas concepções sobre simetria,
beleza e sentido, mesmo que a natureza, como aponta o físico Marcelo Gleiser,
venha resistindo a tais pretensões. Continuamos a nos ressentir quando o cosmos
nos é apresentado como imperfeito, acidental ou sem um propósito discernível. A
menos, naturalmente, que estejamos convencidos de que se trata de uma
brincadeira, de que o autor de semelhante descrição não pretenda insinuar que o
universo seja de fato absurdo. Chegamos inclusive a nos convencer de que em
algum momento aquela sequencia estapafúrdia de eventos será finalmente amarrada
em um enredo irresistível e bem-acabado, sem “pontas soltas”. E se isso não
acontecer, diremos que a obra é divertida, mas ela mesma imperfeita. Afinal,
não é assim que avaliamos o Guia do Mochileiro das Galáxias?
Tem a ver:
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