quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A CAÇADA


O primeiro passo é delimitar um território. No centro de Porto Alegre, nas cercanias da antigamente chamada Rua da Ladeira, há muitos sebos com estantes destinadas à FC. São um bom começo.  Normalmente, estas estantes estão nos fundos da loja, secundadas por um certo aroma mofado com o qual o caçador acaba por se identificar. Uma imutabilidade aparente caracteriza estes acervos pouco frequentados, mas o rastreador experiente não se deixará iludir. Bem ali, camuflada entre dezenas de empoeirados exemplares da coleção Perry Rhodan, poderá estar a presa. No melhor dos cenários, um raro exemplar, como Enfírio, de Jack Vance.

Idealmente, a consumição da presa é iniciada tão imediatamente quanto possível em uma cafeteria próxima, acompanhada preferencialmente de um quindim ou de um pastel de Belém (em tempos de dieta, salada de frutas). Mas e se o livreiro inescrupulosamente tiver fixado o valor do livro de forma extorsiva? Ou se a perseguição for excepcionalmente frutuosa e houverem várias presas em perspectiva?  Os recursos financeiros do caçador são limitados, afinal! Neste caso, o curso de ação prudente é esconder as obras em algum ponto dentro da loja (na estante de puericultura, por exemplo) para mantê-las a salvo de outros que possam estar em seu encalço. No mês seguinte, basta retornar para a captura final. Recentemente, encontrei um “colega” junto a uma estante de FC, e ele não somente confidenciou-me o seu esconderijo como gentilmente cedeu-me a aquisição de um volume de Coleção Argonauta de baixa numeração. Tolo.
Uma variação particularmente desafiante e verdadeiramente esportiva da caçada dá-se quando a presa é perseguida em estabelecimentos desorganizados, que não dedicam espaço exclusivo à FC ou empregam toda a sorte de perversões classificatórias, como organizar os livros pelo primeiro nome do autor, e não pelo sobrenome. Nada é capaz de transmitir a perspectiva de estar imerso em uma bizarra cultura extraterrestre como encontrar obras de Asimov na letra de “I” de Isaac.
Mas quais são as perspectivas futuras desta nobre modalidade? O número de presas é limitado, ao fim das contas. Foi possível, ao longo de míseros anos de atividade, amealhar, sem gastos excessivos, um grande bocado daquela ínfima porção da FC vertida para o português. Mas para quem já empreendeu longas jornadas pelas tortuosas vias urbanas, sob sol e chuva, é perturbador encontrar as mesmas obras disponíveis para qualquer um em perfumados shoppings (esse pessoal da Aleph me paga!). Além do mais, o que pode ser mais emocionante do que a leitura de uma das antigas traduções da Hemus?  Cada frase era um desafio, podia significar exatamente o oposto do que o autor pretendia (sublinhei algumas assim em meu exemplar da Fundação). Como aprenderão as novas gerações a interpretar textos com essas novas traduções de boa qualidade?
Aquisições pela internet são ameaça particularmente perniciosa. Você descobre imediatamente o paradeiro de seu alvo, e o entregam em sua casa ou local de trabalho. Não é a toa que eu mesmo estou perdendo a fibra. Não me dedico à caçada faz algum tempo.  E, de alguma forma, a leitura se tornou menos lazeirosa. Algo foi perdido, um elo quebrado. Naturalmente, prefiro atribuir esse sentimento de incompletude à progressiva obsolescência das minhas andanças literárias rituais. Considerar as alternativas é desconfortável: será que não há mais novidades significativas no gênero? Estaremos condenados a reler continuamente as mesmas obras?  Será que vou ter de realmente começar a ler FC em inglês?  Será que a FC acabou?
Uma outra voz sussurra: “estás finalmente amadurecendo, deixando essas ilusões infantis para lá”. Rejeito a ideia de que FC seja tão somente escapismo.  Obras como O Deus da Fúria (PKD e Zelazny) são talvez o oposto: não é possível lê-las e continuar como se nada tivesse acontecido. Mas essa voz sussurrada talvez tenha certa razão: certas coisas na FC não (me) sensibilizam mais. Irônico constatar que foram autores atuando dentro no gênero que o tenham, com muita autoridade, desnudado.
 
Tem a ver:
 
 

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