O
primeiro passo é delimitar um território. No centro de Porto Alegre, nas
cercanias da antigamente chamada Rua da Ladeira, há muitos sebos com estantes
destinadas à FC. São um bom começo.
Normalmente, estas estantes estão nos fundos da loja, secundadas por um
certo aroma mofado com o qual o caçador acaba por se identificar. Uma
imutabilidade aparente caracteriza estes acervos pouco frequentados, mas o
rastreador experiente não se deixará iludir. Bem ali, camuflada entre dezenas
de empoeirados exemplares da coleção Perry Rhodan, poderá estar a presa. No
melhor dos cenários, um raro exemplar, como Enfírio, de Jack Vance.
Idealmente,
a consumição da presa é iniciada tão imediatamente quanto possível em uma
cafeteria próxima, acompanhada preferencialmente de um quindim ou de um pastel
de Belém (em tempos de dieta, salada de frutas). Mas e se o livreiro inescrupulosamente
tiver fixado o valor do livro de forma extorsiva? Ou se a perseguição for
excepcionalmente frutuosa e houverem várias presas em perspectiva? Os recursos financeiros do caçador são
limitados, afinal! Neste caso, o curso de ação prudente é esconder as obras em
algum ponto dentro da loja (na estante de puericultura, por exemplo) para
mantê-las a salvo de outros que possam estar em seu encalço. No mês seguinte,
basta retornar para a captura final. Recentemente, encontrei um “colega” junto
a uma estante de FC, e ele não somente confidenciou-me o seu esconderijo como
gentilmente cedeu-me a aquisição de um volume de Coleção Argonauta de baixa
numeração. Tolo.
Uma
variação particularmente desafiante e verdadeiramente esportiva da caçada dá-se
quando a presa é perseguida em estabelecimentos desorganizados, que não dedicam
espaço exclusivo à FC ou empregam toda a sorte de perversões classificatórias,
como organizar os livros pelo primeiro nome do autor, e não pelo sobrenome.
Nada é capaz de transmitir a perspectiva de estar imerso em uma bizarra cultura
extraterrestre como encontrar obras de Asimov na letra de “I” de Isaac.
Mas
quais são as perspectivas futuras desta nobre modalidade? O número de presas é
limitado, ao fim das contas. Foi possível, ao longo de míseros anos de
atividade, amealhar, sem gastos excessivos, um grande bocado daquela ínfima
porção da FC vertida para o português. Mas para quem já empreendeu
longas jornadas pelas tortuosas vias urbanas, sob sol e chuva, é perturbador
encontrar as mesmas obras disponíveis para qualquer um em perfumados shoppings
(esse pessoal da Aleph me paga!). Além do mais, o que pode ser mais emocionante
do que a leitura de uma das antigas traduções da Hemus? Cada frase era um desafio, podia significar
exatamente o oposto do que o autor pretendia (sublinhei algumas assim em meu
exemplar da Fundação). Como aprenderão as novas gerações a interpretar textos
com essas novas traduções de boa qualidade?
Aquisições
pela internet são ameaça particularmente perniciosa. Você descobre
imediatamente o paradeiro de seu alvo, e o entregam em sua casa ou local de
trabalho. Não é a toa que eu mesmo estou perdendo a fibra. Não me dedico à
caçada faz algum tempo. E, de alguma
forma, a leitura se tornou menos lazeirosa. Algo foi perdido, um elo quebrado.
Naturalmente, prefiro atribuir esse sentimento de incompletude à progressiva
obsolescência das minhas andanças literárias rituais. Considerar as
alternativas é desconfortável: será que não há mais novidades significativas no
gênero? Estaremos condenados a reler continuamente as mesmas obras? Será que vou ter de realmente começar a ler
FC em inglês? Será que a FC acabou?
Uma
outra voz sussurra: “estás finalmente amadurecendo, deixando essas ilusões
infantis para lá”. Rejeito a ideia de que FC seja tão somente escapismo. Obras como O Deus da Fúria (PKD e Zelazny)
são talvez o oposto: não é possível lê-las e continuar como se nada tivesse
acontecido. Mas essa voz sussurrada talvez tenha certa razão: certas coisas na
FC não (me) sensibilizam mais. Irônico constatar que foram autores atuando
dentro no gênero que o tenham, com muita autoridade, desnudado.
Tem a ver:
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