segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A VOZ DO MESTRE – STANISLAW LEM


Acabo de reler A Voz do Mestre, de Stanislaw Lem (Ed. Francisco Alves, 1991). O texto de Lem é denso e filosófico. Problemas de tradução contribuem para tornar o livro quase impenetrável em certas passagens. Não obstante, é uma leitura fantástica: as explanações a respeito da aleatoriedade, por exemplo, são perfeitamente acuradas e essenciais para a compreensão da trama. E se fosse percebido um padrão nos bilhões de neutrinos cósmicos que atravessam a Terra a cada instante? Tratar-se-ia de uma mensagem? Eis a trama de A Voz do Mestre, que nos apresenta os bastidores de um projeto secreto do governo dos EUA destinado a “decifrar” uma “mensagem” recebida das estrelas. Uma legião de cientistas de diferentes áreas é recrutada e instalada em uma região desértica do EUA. Não é por acaso que Lem (que era polonês) situa a narrativa na América: existe a intenção mais ou menos expressa de estabelecer uma comparação com o Projeto Manhattan. 

A Voz do Mestre - Ed. Francisco Alves



Os problemas de tradução evidenciam-se em pormenores tão essenciais como o nome do projeto em si. O texto oferece dois nomes:  "A voz do mestre" e a "A voz de seu mestre", alternando entre um e outro. O caso é que a versão da Ed. Francisco Alves, destinada ao público brasileiro, é uma tradução da versão em inglês, e não do original polonês. O livro se chama, em polonês, Glos Pana, que de acordo com o Google, se traduz por A Voz do Mestre (VM). A versão em inglês acabou se chamando His Master Voice (HMV), que se traduziria por "A voz de seu mestre" (VSM). Ora, o título em inglês é um feliz achado de tradução, pois o conhecido logo da marca fonográfica His master voice mostra um cãozinho ouvindo a voz de seu dono em um gramofone. Pode-se supor que o cãozinho reconheça a voz do dono e até preste-lhe atenção, mas é incapaz de uma compreensão mais aprofundada do que o dono diz. Exatamente essa é a posição da humanidade ante a mensagem das estrelas, de acordo com Lem: ouvimos, mas somos incapazes de entender.


É irônico discutir os problemas de tradução de uma obra que trata, ela mesma, sobre problemas de tradução, mas prossigamos... O fato é que, tendo em vista leitores brasileiros, bastaria escolher um dos títulos e seguir com ele, ao invés de alternar entre um e outro. O emprego de siglas só aumenta a confusão, pois são todas empregadas: alterna-se entre VM, VSM e HMV. Algo semelhante ocorre com a designação dada pelos pesquisadores a um dos experimentos realizados a partir da mensagem de neutrinos, cuja tradução alterna entre “Senhor das Moscas” e “Senhor dos Voos”. É mencionado, de passagem, um certo Padre Pignani que, escandalizado com este experimento, escreveu um volume chamado A Epístola do Anticristo para denunciá-lo. Mas o que despertou a revolta do bom padre? É que ele sabia que o nome Belzebu, de origem hebraica, significa “Senhor das Moscas”, assim como também sabiam os cientistas que assim nomearam o experimento, alojando-o em instalações subterrâneas e divertindo-se à beça com o caráter "infernal" da situação. Essa questão, que é vital para a obra e fundamenta as divagações de Lem sobre Teologia (e Demonologia...), passou desapercebida, infelizmente, dos tradutores para o português. Há muitos outros problemas, como traduzir Brownian motion por “movimento Castanho”, que evidenciam que os autores não estavam à altura nem da erudição de Lem nem do vocabulário das ciências.

O texto, em sua quase totalidade, é constituído pela narrativa em primeira pessoa do matemático Peter E. Hogarth de sua experiencia como participante do projeto VM. É um livro com poucos personagens e pouca ação: Hogarth fala muito de si mesmo e de alguns colegas do VM, todos homens (creio que a única mulher mencionada é a mãe de Hogarth). Se quisermos, podemos entender A Voz do Mestre como um longo discurso sobre a condição humana (ou seria contra a condição humana?). Vejamos a opinião do próprio Hogarth sobre o VM, tal como expresso ao final do primeiro capítulo:

Formigas que encontram um filósofo morto em seu jardim podem fazer bom uso dele. Como poderíamos assumir que seríamos capazes de compreender uma civilização completamente diferente da nossa, se ela se comunicasse conosco através do espaço cósmico?  Permanecemos todos ao pé de um achado gigante. Escalamos esse gigante por todos os lados, rápida, esfomeada e engenhosamente, como formigas. Eu era uma delas. Essa é a história de uma formiga.

 

            É a voz de Lem que ouvimos aqui. A Voz do Mestre, obra lançada originalmente em 1968, permite ao autor retomar de forma explícita o tema da impossibilidade da comunicação, já antecipado de forma mais suave na anterior Solaris (1961).

            E qual era o conteúdo da mensagem cósmica, afinal? Nenhum foi descoberto, pelo menos em um sentido semântico. Esse “fracasso” não impediu que muitas descobertas científicas fossem realizadas, levando inclusive à tentativa de produção de um poderoso armamento por parte do projeto VM. O sinal de neutrinos, entretanto, apresentou propriedades “biofílicas”: coloides expostos a versões amplificadas do sinal sofriam alterações “vivificantes”. Apurou-se que o sinal aumentava a probabilidade do surgimento de moléculas orgânicas ao interferir com o movimento Browniano de uma forma específica. É por isso que Hogarth, um ateu, acaba por se embrenhar em argumentação teológica: o sinal poderia ser a causa da vida na Terra ou mesmo em nosso universo. Quem o teria gerado?

            Lem ficou conhecido pela sua crítica à Ficção Científica, em especial da cepa estadunidense. Em A Voz do Mestre, cabe também a Hogarth verbalizar a opinião do próprio Lem, desta vez sobre a FC. Seria uma forma de literatura que, mesmo despertando maravilhamento superficial, não contribuiria na geração de questionamentos em relação à filosofia de vida, antes reforçando as crenças dos leitores. Para Lem, o grande autor da FC estadunidense era o marginal Philip K. Dick, a quem elogiou no artigo A Visionary Among the Charlatans (1975). Duvida-se que Lem soubesse que, em 1974, PKD havia enviado uma carta ao FBI denunciando-o como um perigoso divulgador do comunismo. Ou melhor: PKD acusava Stanislaw Lem de não ser uma pessoa, mas sim um comitê. Para PKD, a multifacetada maestria estilística do autor polonês seria evidência de que se tratava de muitas pessoas, de um grupo de conspiradores... o que não deixa de ser um elogio, talvez o único tipo de que o paranoico PKD fosse capaz.

            A Voz do Mestre é um texto amargo. Lem reconhece, como não poderia deixar de fazer, os portentos tecnológicos de nossa civilização, mas sem descurar de suas contradições (“Comunista!” – sussurra-nos PKD).  Como diz Hogarth: sabemos com certeza que, quando os primeiros emissários da Terra estiverem andando por outros planetas, aqui mesmo outros filhos da Terra estarão antes sonhando com um pedaço de pão... 

 

Tem a ver:

Notas de um mochileiro das galáxias 

A propósito de Marune, Alastor 933 

As Canções da Terra Distante 

 

2 comentários:

  1. Acho lamentável que mais trabalhos de Lem não tenham sido traduzidos por aqui. Ele é muito mais do que apenas Solaris. Que é ótimo, um dos meus livros favoritos, mas há muito mais do autor por aí.

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  2. Honrado com a visita! Sim, que venham mais edições de Lem. As Ciberíadas bem mereciam uma tradução para o português!

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