Acabo de reler A Voz
do Mestre, de Stanislaw Lem (Ed. Francisco Alves, 1991). O texto de Lem é
denso e filosófico. Problemas de tradução contribuem para tornar o livro quase
impenetrável em certas passagens. Não obstante, é uma leitura fantástica: as
explanações a respeito da aleatoriedade, por exemplo, são perfeitamente
acuradas e essenciais para a compreensão da trama. E se fosse percebido um
padrão nos bilhões de neutrinos cósmicos que atravessam a Terra a cada instante?
Tratar-se-ia de uma mensagem? Eis a trama de A Voz do Mestre, que nos
apresenta os bastidores de um projeto secreto do governo dos EUA destinado a “decifrar”
uma “mensagem” recebida das estrelas. Uma legião de cientistas de diferentes
áreas é recrutada e instalada em uma região desértica do EUA. Não é por acaso
que Lem (que era polonês) situa a narrativa na América: existe a intenção mais
ou menos expressa de estabelecer uma comparação com o Projeto Manhattan.
Os problemas de tradução
evidenciam-se em pormenores tão essenciais como o nome do projeto em si. O
texto oferece dois nomes: "A voz do mestre" e a "A voz de
seu mestre", alternando entre um e outro. O caso é que a versão da Ed.
Francisco Alves, destinada ao público brasileiro, é uma tradução da versão em
inglês, e não do original polonês. O livro se chama, em polonês, Glos
Pana, que de acordo com o Google, se traduz por A Voz do Mestre
(VM). A versão em inglês acabou se chamando His Master Voice (HMV), que
se traduziria por "A voz de seu mestre" (VSM). Ora, o título em
inglês é um feliz achado de tradução, pois o conhecido logo da marca
fonográfica His master voice mostra um cãozinho ouvindo a voz de seu
dono em um gramofone. Pode-se supor que o cãozinho reconheça a voz do dono e
até preste-lhe atenção, mas é incapaz de uma compreensão mais aprofundada do
que o dono diz. Exatamente essa é a posição da humanidade ante a mensagem das
estrelas, de acordo com Lem: ouvimos, mas somos incapazes de entender.
É irônico discutir os problemas de tradução de uma obra que trata, ela mesma, sobre problemas de tradução, mas prossigamos... O fato é que, tendo em vista leitores brasileiros, bastaria escolher um dos títulos e seguir com ele, ao invés de alternar entre um e outro. O emprego de siglas só aumenta a confusão, pois são todas empregadas: alterna-se entre VM, VSM e HMV. Algo semelhante ocorre com a designação dada pelos pesquisadores a um dos experimentos realizados a partir da mensagem de neutrinos, cuja tradução alterna entre “Senhor das Moscas” e “Senhor dos Voos”. É mencionado, de passagem, um certo Padre Pignani que, escandalizado com este experimento, escreveu um volume chamado A Epístola do Anticristo para denunciá-lo. Mas o que despertou a revolta do bom padre? É que ele sabia que o nome Belzebu, de origem hebraica, significa “Senhor das Moscas”, assim como também sabiam os cientistas que assim nomearam o experimento, alojando-o em instalações subterrâneas e divertindo-se à beça com o caráter "infernal" da situação. Essa questão, que é vital para a obra e fundamenta as divagações de Lem sobre Teologia (e Demonologia...), passou desapercebida, infelizmente, dos tradutores para o português. Há muitos outros problemas, como traduzir Brownian motion por “movimento Castanho”, que evidenciam que os autores não estavam à altura nem da erudição de Lem nem do vocabulário das ciências.
O texto, em sua quase totalidade,
é constituído pela narrativa em primeira pessoa do matemático Peter E. Hogarth de
sua experiencia como participante do projeto VM. É um livro com poucos personagens
e pouca ação: Hogarth fala muito de si mesmo e de alguns colegas do VM, todos homens (creio que a única mulher mencionada é a mãe de Hogarth). Se
quisermos, podemos entender A Voz do Mestre como um longo discurso sobre
a condição humana (ou seria contra a condição humana?). Vejamos
a opinião do próprio Hogarth sobre o VM, tal como expresso ao final do primeiro
capítulo:
Formigas que encontram um filósofo morto
em seu jardim podem fazer bom uso dele. Como poderíamos assumir que seríamos
capazes de compreender uma civilização completamente diferente da nossa, se ela
se comunicasse conosco através do espaço cósmico? Permanecemos todos ao pé de um achado
gigante. Escalamos esse gigante por todos os lados, rápida, esfomeada e engenhosamente, como formigas. Eu era uma delas. Essa é a história de uma formiga.
É a voz de Lem que ouvimos aqui. A Voz
do Mestre, obra lançada originalmente em 1968, permite ao autor retomar de forma explícita o tema da impossibilidade da comunicação, já antecipado de forma mais suave na anterior Solaris (1961).
E
qual era o conteúdo da mensagem cósmica, afinal? Nenhum foi descoberto, pelo menos em
um sentido semântico. Esse “fracasso” não impediu que muitas descobertas científicas
fossem realizadas, levando inclusive à tentativa de produção de um poderoso armamento
por parte do projeto VM. O sinal de neutrinos, entretanto, apresentou
propriedades “biofílicas”: coloides expostos a versões amplificadas do sinal
sofriam alterações “vivificantes”. Apurou-se que o sinal aumentava a probabilidade
do surgimento de moléculas orgânicas ao interferir com o movimento Browniano de
uma forma específica. É por isso que Hogarth, um ateu, acaba por se embrenhar
em argumentação teológica: o sinal poderia ser a causa da vida na Terra
ou mesmo em nosso universo. Quem o teria gerado?
Lem
ficou conhecido pela sua crítica à Ficção Científica, em especial da cepa
estadunidense. Em A Voz do Mestre, cabe também a Hogarth verbalizar a opinião
do próprio Lem, desta vez sobre a FC. Seria uma forma de literatura que, mesmo despertando
maravilhamento superficial, não contribuiria na geração de questionamentos em
relação à filosofia de vida, antes reforçando as crenças dos leitores. Para
Lem, o grande autor da FC estadunidense era o marginal Philip K. Dick, a quem
elogiou no artigo A Visionary Among the Charlatans (1975). Duvida-se que
Lem soubesse que, em 1974, PKD havia enviado uma carta ao FBI denunciando-o
como um perigoso divulgador do comunismo. Ou melhor: PKD acusava Stanislaw Lem
de não ser uma pessoa, mas sim um comitê. Para PKD, a multifacetada maestria
estilística do autor polonês seria evidência de que se tratava de muitas
pessoas, de um grupo de conspiradores... o que não deixa de ser um elogio, talvez o único tipo de que o paranoico
PKD fosse capaz.
A Voz do Mestre é um texto amargo. Lem reconhece, como não poderia deixar de fazer, os portentos tecnológicos de nossa civilização, mas sem descurar de suas contradições (“Comunista!” – sussurra-nos PKD). Como diz Hogarth: sabemos com certeza que, quando os primeiros emissários da Terra estiverem andando por outros planetas, aqui mesmo outros filhos da Terra estarão antes sonhando com um pedaço de pão...
Tem a ver:
Notas de um mochileiro das galáxias
A propósito de Marune, Alastor 933
Acho lamentável que mais trabalhos de Lem não tenham sido traduzidos por aqui. Ele é muito mais do que apenas Solaris. Que é ótimo, um dos meus livros favoritos, mas há muito mais do autor por aí.
ResponderExcluirHonrado com a visita! Sim, que venham mais edições de Lem. As Ciberíadas bem mereciam uma tradução para o português!
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