segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

E QUANTO AOS DEUSES? – PARTE 1

 

            Muita FC foi escrita postulando a interferência de extraterrestres (entendidos como "divinos") em nosso planeta. A Voz do Mestre (1968), de Stanislaw Lem, trata de uma transmissão de neutrinos – gerada intencionalmente por outra civilização – que teria permitido o próprio fenômeno da vida na Terra (e talvez em uma vasta região da galáxia) ao aumentar as probabilidades da biogênese. Em 2001: Uma Odisseia no Espaço (também de 1968), Arthur C. Clarke descreve como um artefato de origem extraterrestre – o famoso monolito negro – teria atuado para incrementar a capacidade cognitiva dos pré-humanos.


            Realmente, parece que a ideia estava no ar, pois Eram os Deus Astronautas, de Erich von Däniken, é do mesmíssimo ano de 1968. Alertamos o leitor desde já que este texto se destina a expressar desaprovação pela obra de Däniken. Não se trata propriamente de um livro de ficçãoembora possamos frequentemente encontrá-lo assim classificado em livrarias. Trata-se, sim, de um espetacular exemplo de fake news, com mais de 70 milhões de cópias vendidas pelo mundo. Mesmo assim, influenciou inúmeras obras de FC, incluído produções televisivas, notavelmente a franquia Stargate. Toda essa influência – ao nosso ver, daninha – justifica tratarmos um pouco mais aqui no blog da hipótese dos “astronautas antigos adorados como deuses”.

Däniken alega estar revelando verdades profundas cujo reconhecimento seria impedido pelo establishment religioso-científico.  Esta ideia em si já suscita algum espanto, pois o que frequentemente ocorre é as esferas da religião e da ciência estarem em oposição, como no caso Galileu. Mas, para Däniken, o fato de suas ideias serem combatidas tanto por cientistas como por religiosos – por desafiarem tanto os conhecimentos científicos quanto as narrativas religiosas – é prova adicional de sua veracidade.

Existe uma obra lançada pela Editora Movimento (aqui de Porto Alegre) em 1972 e que se chama A Verdade sobre os Deuses Astronautas. O autor, Fernando G, Sampaio, oferece respostas detalhadas e embasadas aos argumentos pseudocientíficos de Däniken. Entretanto, o enfoque que adotaremos aqui será um pouco mais diferente. Na série de textos E quanto aos deuses? iremos tentar entender o que torna as narrativas de contato ancestral tão chamativas, seja nos escritos de Däniken como em textos de FC, apesar de sua flagrante implausibilidade.

Comecemos com o romance O Coração das Trevas (1899) de Joseph Conrad. Harold Bloom observou que é possivelmente a obra literária mais estudada no meio acadêmico até momento, e isso devido à ambiguidade da escrita de Conrad. Se, por um lado, a obra efetivamente deplora o colonialismo europeu, por outro entrega-se à seguinte fantasia: um comerciante de marfim, o Sr. Kurtz, se faz adorar pelos africanos nativos como um semideus, impressionando-os com demonstrações de uma tecnologia "superior". Esta fantasia delirante de poder colonial vem sendo fortemente questionada por pensadores pós-coloniais por sua desumanização dos africanos. Não é possível, com seriedade, tomá-la como uma representação historicamente credível, a menos que resgatemos vagas semelhanças com os cultos à carga da Melanésia.  Parece ser antes uma retomada do mito segundo o qual os habitantes nativos do México teriam considerado seus conquistadores espanhóis como deuses. Trata-se de uma obra ficcional, não de um registro antropológico. Mesmo assim, parece haver algo de muito convincente e satisfatório nessa fantasia, principalmente se você adotar uma visão de mundo em que o colonialismo é considerado uma triunfal missão civilizadora.

O que Däniken faz é adotar as relações coloniais, tais como ele concebia a partir de seu senso comum de suíço dos anos 60, como paradigma das relações entre extraterrestres e terrestres. Se os nativos africanos adoraram o Sr. Katz, devidamente impressionados por seu mambo-jambo, também nós, humanos, o fizemos com nossos visitantes cósmicos.  As atividades dos ETs, para Däniken, teriam coincidido amplamente com as dos colonizadores europeus: a exploração de recursos naturais, o oferecimento de "avanços" civilizacionais e tecnológicos aos "primitivos" e mesmo a observação em busca  de conhecimento ("antropologia").

Narrativas similares abundam na FC, e algumas delas até conseguem problematizar este tropo de forma interessanteA questão toda é que Däniken não está fazendo FC, ele alega desvelar verdades ocultas. Seu raciocínio ampara-se na lógica da “raça superior” que melhora uma “raça inferior”. Os extraterrestres, “superiores” por definição, não teriam exercido sua influência de forma uniforme sobre as populações do planeta. As populações por eles escolhidas e "melhoradas" teriam sido "elevadas" a um novo patamar, “civilizado”, mais “evoluído” em relação aos demais grupos humanos, que teriam permanecido “primitivos” (o que explicaria o abismo entra as nações ditas desenvolvidas e as demais). Isso tudo através, inclusive, de procriação seletiva entre os deuses-astronautas e fêmeas humanas selecionadas...

Em A Verdade sobre os Deuses Astronautas, Sampaio trata desse pormenor em capítulo intitulado, com muito acerto, “Um pouco de nazismo”.  Claro: hoje estamos mais conscientes de que estes pressupostos racistas não são uma exclusividade do nazismo, mas sim um componente estrutural de muitas sociedades. Mas mesmo assim Eram os Deuses Astronautas ainda pode ser encontrado, em novíssimas edições, nas livrarias. Repetimos: é uma obra que defende que as raças humanas ditas “superiores” são aquelas descendentes de extraterrestres! Sim, vivemos em tempos de pós-verdade...

No recentíssimo A Vida Não É Útil (2020), Ailton Krenak faz breves comentários, temperados de ironia, sobre tal hipótese. Seria a ancestralidade alienígena a razão certos povos sentirem-se distintos da natureza, dotados uma qualidade especial ausente em todas demais criaturas do planeta? Seria a explicação da insensibilidade das nações industrializadas para com a vida na Terra e de sua disposição em destruí-la? E oferece aquela que talvez seja a melhor resposta possível a Däniken, que parafraseamos da seguinte forma: se isso tudo fosse verdade, o melhor que estes descendentes dos astronautas antigos poderiam fazer é encontrarem logo uma maneira de irem para Marte ou qualquer outro lugar que pudessem continuar a explorar, deixando a Terra novamente para seus habitantes originais. (E não deixa de ser uma ideia muito boa, de certa forma: Jorge Luiz Calife a explora em sua obra).

A série Uplift (Elevação), escrita por David Brin entre 1980 e 1998, é também herdeira dessa problemática. Está quase inteiramente disponível em português como parte coleção de FC da editora Europa-América (de Portugal). A exceção é Sundiver, o primeiro livro da série, que não tem tradução em português. Os demais são: Maré Alta Estelar, A Guerra da Elevação, Filhos do Exílio, Fronteiras do Infinito e O Céu como Limite – todos divididos em duas partes pela Europa-América, de forma que a coleção em português consiste em dez volumes. (Como se trata de publicação relativamente recente, não está inteiramente disponível nos sebos do Brasil, de forma que tive de importar alguns... doeu no bolso!).

        O conceito central desta série é o de “elevação”, processo pela qual uma espécie sapiente (no sentido de consciente / inteligente / capaz de comunicação) dota uma outra espécie deste mesmo "dom" através de engenharia genética e outros processos. Em retorno, a espécie cliente presta serviços à espécie patrona por um período específico (digamos, 100.000 anos). Tomemos por exemplo uma das relações patrono-cliente apresentadas, que é aquela entre humanos e golfinhos. Humanos dão aos seus clientes sapiência e empregam sua mão de obra para pilotar naves espaciais, tirando proveito das capacidades de orientação em três dimensões já presentes nos golfinhos.

Não se pode falar exatamente em racismo, pois não se trata de diferenças entre seres humanos elevados e não-elevados, como no caso de Däniken. Mas se pode falar, sim, naquela crença de alguns seres humanos de possuir uma certa qualidade especial distintiva em relação ao mundo natural (como aponta Krenak) e em exploração de uma espécie por outra. Evidentemente, chamar a espécie a ser elevada de “cliente” é uma impropriedade: um cliente pode, em tese, decidir se deseja ou não um produto, mas no universo Uplift os clientes não são consultados. Os golfinhos não tiveram a oportunidade de deliberar se a “dádiva” da sapiência valia a pena: os humanos simplesmente decidiram “elevá-los” para disporem de sua mão de obra especializada. Os golfinhos não estavam em condições de deliberar, justamente, por não serem "sapientes". Mas quantas vezes povos humanos não tomaram decisões cruciais em nome de outros povos argumentando, justamente, que estes outros não estavam aptos a compreender o que estava em jogo?

            As espécies patronas dispõem não somente dos serviços das espécies clientes, mas também de sua devoção. Os mais reverenciados entre todo são os míticos Progenitores, que teriam iniciado o processo de elevação de todas as demais espécies em um passado distante. Presentemente retirados da cena galáctica, aguardam o fim dos tempos para então retornarem e julgarem os méritos das espécies remanescentes... Vejam como é difícil manter os deuses-astronautas fora do tabuleiro!

            Brin parece adotar alguma concepção teleológica em que a meta da evolução seria a sapiência (tal como definida pelas espécies dotadas deste atributo, evidentemente). Assim, ao "elevarem" os golfinhos, humanos estariam somente acelerando um processo natural e inevitável já andamento. Esse é um ponto de vista cientificamente indemonstrável – embora seja largamente aceito. Como provar que os humanos são mais evoluídos que os golfinhos? Essa proposição sequer faz sentido! Já discutimos em postagens anteriores: é uma forma de antropocentrismo considerar os atributos cognitivos humanos como a meta das demais espécies do planeta, ou mesmo considerar que tais atributos encontrem análogos evidentes em formas de vida extraterrestres que possam ser encontradas.

            Recomendo a leitura destas obras de Brin, que considero instigantes e muito bem escritas. Não obstante, há momentos de grande desconforto: a narrativa parece naturalizar e justificar discursos imperialistas a partir de argumentos derivados do cognitivismo.  Não sei até que ponto esta é uma avaliação pertinente porque não conheço ninguém mais que tenha lido estes volumes e nunca tive o prazer de discuti-los (fica o convite!). Claro está que há um mar de diferenças entre a série Uplift e Eram os Deus Astronautas. Entretanto, do meu ponto de vista, quer parecer que a segunda lança suas sombras sobre a primeira.

Continua aqui: https://tavernadesmade.blogspot.com/2021/01/e-quanto-aos-deuses-parte-2.html



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