segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

E QUANTO AO PARAÍSO?

        Descrevo a seguir cinco visões genéricas a respeito do sentido da história, tal podem ser encontradas em obras de ficção especulativa (categoria que abrange também a FC). Uso a expressão paraíso em um sentido não religioso, como significando um estado geral de coisas absolutamente desejável, uma sociedade ideal. Mas não a uso por acidente, na medida em que constato as relações entre a ficção especulativa e o pensamento religioso.

 

 1. O paraíso está no passado. 

        Esse tipo de esquema pode ser encontrado, por exemplo, na obra de Tolkien. Como é melancólico o momento em que os últimos elfos deixam a Terra Média, ao final de O Senhor dos Anéis! Trata-se do fim de uma era gloriosa que jamais retornará... A raça dos homens, por valorosa que seja, não pode aspirar às perfeições élficas, que agora estão definitivamente no passado. Como seria de esperar, esse tipo de visão não é comum na FC, que prefere discutir as perfeições futuras. Mas há exceções, como Clifford Simak, que louvava o passado rural e religioso dos EUA e não se mostrava muito empolgado com a concepção de progresso. 

      Uma variedade desse esquema é aquele que considera que o paraíso perdido deve ser de alguma forma recriado através de algum programa de regeneração dos costumes e da rejeição dos valores modernos. Trata-se de uma concepção que abunda na literatura do fundamentalismo religioso de nossos dias. Essa visão simplista está ausente dos escritos de Tolkien, que mostram o passado sendo incorporado ao presente através da cultura, e não a rejeição sumária do presente.

2. O paraíso está no futuro.

      A visão preferida da “Idade Dourada” da FC. Versões tecnológicas da Parousia combinadas com aspirações do Cosmismo e pitadinhas de Destino Manifesto. A história teria uma finalidade desejável, um traçado ótimo que conduziria à conquista do espaço, ao fim da morte e às utopias de sociedades perfeitas, como a Federação Unida de Planetas de Star Trek.

     Mas se considerarmos que o "paraíso" está no futuro (com sentido irônico, portanto) teremos as distopias a la Orwell.  Distopistas não argumentam que o paraíso está no passado, mas sim que, ao buscar o paraíso no futuro, as coisas podem não dar certo... 

3.  Paraísos contingentes. 

     A história não teria uma meta ou objetivo final conhecido. Seres humanos serão sempre desafiados e pressionados pelas circunstâncias, e nenhuma configuração social pode cristalizar-se pela eternidade. O universo é imprevisível. Aqui encontramos, por exemplo, certas obras de Jack Vance, Frank Herbert e Cixin Liu. Não haverá um paraíso, e se houver, não será por muito tempo. Não há garantias de que os bonzinhos vençam no final, até porque não há final. 

 4. Não estamos indo a lugar algum, paraíso ou inferno. 

      É o universo de Star Wars, oscilando eternamente. A meta é o equilíbrio. Não há possibilidade de síntese dialética ou compromisso entre os lados opostos da Força. Nenhum dos lados jamais vencerá. Logo, não há qualquer espaço para conceitos de longo prazo como evolução, progresso etc. É um tipo de universo em que nada realmente novo acontece no que diz respeito às grandes estruturas sociais, que se sucedem em um esquema cíclico. O foco recai sobre as aventuras dos indivíduos.

5. Paraísos secretos e/ou exclusivos. 

       A História é um engodo, e suas promessas são mentiras. Toda a agitação social dos homens é apenas uma cortina de fumaça. A Redenção consiste em rasgar o véu das ilusões, em um momento de verdade total. O Paraíso é um estado secreto, obtido a partir da súbita revelação individual. Eis o universo de Philip K. Dick, em que personagens de existência perfeitamente banal estão sujeitos à irrupções do transcendente. PKD chegou a afirmar: "o Império Romano nunca terminou!". Vivemos a mais brutal das opressões, mas nunca chegamos a percebê-lo, iludidos com narrativas fantasiosas de progresso. 

        Quando enunciadas por um autor marginal de um gênero literário marginal, tais ideias assumem o valor de uma interpelação dos sistemas de poder. Grandes empresas, corporações, governos, religiões... Nenhum deles escapou a PKD, o que o tornou um ícone da contracultura e arauto da pós-modernidade. Mas sua desconfiança das grandes narrativas pode também ser cooptada como um argumento contra possibilidade de utopias compartilhadas. 

       Se os esquemas 1. e 2. derivam das especulações escatológicas monoteístas, e o esquema 4. de uma leitura equivocada do Taoismo, o esquema 5. deriva do gnosticismo e do neoplatonismo. Como esse ponto de vista, de origens herméticas, pôde chegar a ser tão proeminente em nossos dias? Pois não é somente de literatura que se trata, mas também de produções cinematográficas e muitas outras expressões do zeitgeist. Uma explicação possível é: a cultura estadunidense, hoje predominante, é em si mesma permeada por formas de gnosticismo. Harold Bloom enxerga, nos movimentos religiosos dos EUA, pendores gnósticos. Como discute na obra A Religião Americana,  tais movimentos frequentemente enfatizam a conversão individual como o elemento principal da experiência religiosa, em detrimento dos aspectos sociais do Cristianismo. Outra característica que podemos discernir em tais denominações é a crença de que o verdadeiro fio da história é aquele cifrado na literatura apocalíptica. A história e a ciência oficiais são encarada com desconfiança, como se fossem apenas um disfarce ou um epifenômeno do conflito oculto entre o bem e o mal. 

      As complicadas conspirações de PKD, que deram plausibilidade tecnológica aos delírios paranóides do autor, agora extravasaram para a cultura de massa. A Religião Americana, em sua variedade negacionista e mercantil, assola o campo religioso através de correntes de WhatsApp. Documentários misturando ETs e espiritualidade,  muito bem produzidos, são distribuídos em plataformas de streaming. A teoria da conspiração Q-Anon ganha força e tumultua a política dos EUA. Aqui no Brasil, inacreditavelmente, um velho enredo de Arquivo X que relaciona vacinas e microchips encontra estranha sobrevida e tem de ser desmentido pelos telejornais. 

    Projetos coletivos de paraíso estão agora fora de moda... O Futuro chegou, a História acabou: todas as narrativas estão sob suspeita (incluindo as produzidas como FC!). As Utopias fracassaram, mas as Conspirações estão em alta... Restam os paraísos individuais. Tendo dinheiro suficiente, você pode ter o Éden de imediato, mesmo que apenas por alguns dias ou instantes (e mesmo que não tudo passe de um simulacro, sussurra-nos PKD). A globalização transgride todas as fronteiras, até mesmo as que separam o mundo físico do metafísico. O Paraíso Celeste finalmente tornou-se um produto exclusivo, passível de ser continuamente anunciado em inúmeros canais de televisão, e destinado aos devotos do novo deus Mercado.

Tem a ver:

E quanto aos deuses?

As Canções da Terra Distante 

Fluam, minhas lágrimas, disse o policial - PKD





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