segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

E QUANTO AOS DEUSES? – PARTE 2

          Como fã de Star Trek, não posso deixar de comentar que a franquia abordou os deuses-astronautas, ao seu modo, antes de Däniken. Em um episódio de 1967 da Série Clássica Who Mourns for Adonais? a tripulação da Enterprise encontra entre as estrelas Apolo, o musageta, deus grego da luz, da profecia e da música. Mas tudo não passa de um pretexto: o tema do episódio é a luta humana por autodeterminação, e não a hipótese dos astronautas antigos.


Há uma distinta preferência na Série Clássica de Star Trek por alegorias de sabor religioso. O paraíso é uma delas.  Em vários episódios, a Enterprise encontra sociedades em que as características do Éden bíblico  subsistência fácil, paz e saúde perfeitas acabam assumindo, paradoxalmente, um valor distópico. O estado edênico – a submissão ordeira às regras de uma divindade – é apresentado negativamente como paternalista, estático, contrário ao progresso. Em Who Mourns for Adonais?, o deus Apolo (que não passa de um poderoso ET) pretende novamente tutelar a humanidade, oferecendo em troca de louvores um retorno a uma forma de paraíso.  Os tripulantes da Enterprise revoltam-se e reafirmam sua liberdade. Já The Apple (também de 1967) explora o mesmo tema de uma perspectiva diferente. Enterprise encontra um planeta cujos habitantes veneram Vaal, um supercomputador. Ao subverterem a relação dos “nativos” com o seu deus – que é finalmente destruído –, Kirk e cia. agem de forma análoga à serpente do Éden, que convenceu os primeiros humanos a provarem do fruto proibido (a "maçã").  Cabem até piadinhas com as orelhas pontudas de Spock... 

A Primeira Diretriz – que previne que os humanos interfiram em outras culturas indevidamente  basicamente impede enredos em que a tripulação da Enterprise esteja na situação de ser venerada por nativos de outras planetas. Estranhamente, não impede de expor ou aniquilar deuses alheios. A tripulação da Enterprise é especialista em destruir situações distópico-paradisíacas, em um padrão que se repete pelas três temporadas da série Série Clássica. Quase que poderíamos trocar o título da série para "Os deicidas-astronautas": Apolo, Vaal, Landru etc.

Esta licença para extinguir paraísos (ilusórios ou não) auto-concedida pelo capitão Kirk pode ser entendida no contexto da disputa ideológica da guerra-fria. Defende-se a liberdade individual como o valor supremo, mesmo que o custo de reafirmá-lo seja a disrupção social. Quando o seriado propõe que a conduta de interferir em outras sociedades é justa se for para libertá-las, acaba por flertar com certos pressupostos colonialistas. Não é a missão dos povos civilizados “emancipar” os povos “atrasados” de suas crenças “primitivas”, de seus "falsos deuses", encaminhando–os na direção do progresso? Em A Private Little War (1968), o tema é apresentado de uma forma muito explícita, inclusive com a presença de uma potência imperialista rival, os Klingons (pode-se argumentar que representam a URSS). 

Mas há mais na Série Clássica do que mero discurso libertário. A constante recorrência de metáforas religiosas e a obsessão pelo tema dos "falsos deuses" remete diretamente ao zeitgeist gnóstico dos anos 60 (PKD, etc.). Uma das alegações do gnosticismo é a de que nossa realidade é presidida por um falso deus. Por isso, atribui à figuras como a serpente do Éden um valor positivo, por ter emancipado a humanidade de uma deidade opressora (concepção explorada em The Apple). O dualismo entre matéria e espírito é outra crença gnóstica: veja-se por exemplo os organianos de Errand of Mercy (1967), seres que ultrapassaram a necessidade de corpos e agora existem como puro pensamento. Muito do sabor único da Série Clássica deriva de seus pendores gnósticos. 

Em relação à série animada dos anos 70, temos The Magicks of Megas-Tu (1973) como um dos episódios que postulam a interferência extraterrestre na história da Terra. É um episódio de explícito gnosticismo, que sem rodeios apresenta "Lucien" como amigo da humanidade. O melhor exemplo de deuses-astronautas na série animada é, entretanto, um outro episódio, How Sharper Than a Serpent’s Tooth (1974), em que o deus Kukulcán a serpente emplumada dos antigos maias é encontrado pela Enterprise. É um episódio marcado pela sombra de Eram os deuses astronautas?. A intenção de valorizar a cultura dos povos originários da América é certamente louvável, mas Kukulcán é justamente um dos exemplos preferidos de Däniken: o deus seria o responsável pelas conquistas civilizacionais e arquitetônicas dos povos mesoamericanos. Aliás, How sharper than a serpent's tooth it is to have a thankless child! é citação shakespeariana: Rei Lear, Ato 1, Cena 4. 

Como aponta Sampaio – o meticuloso crítico de Eram os Deuses Astronautas? –, o culto da serpente emplumada inicia-se em um período bem posterior ao que pretende Däniken. Ou seja, se de fato Kukulcán é um extraterrestre que teria estado na Terra, chegou tarde demais: povos como os olmecas estavam construindo suas cidades, e já sabiam até fazer pirâmides... É um bom exemplo dos preconceitos recorrentes em relação ao povos não-europeus dos quais Däniken se vale: considera-se que não têm história, que suas sociedade são estáticas, que estão fixados em formas imutáveis de devoção religiosa, que suas crenças não se transformam com o tempo, que são incapazes de descobrir novos conhecimentos por si sós etc.

            Na quinta produção de Star Trek para os cinemas A Última Fronteira (1989) – Kirk e cia. finalmente têm a oportunidade de encontrar uma versão daquela que seria a deidade da tradição judaico-cristã.  Para que perder tempo com divindades menores ou alegorias? Desta vez, a Enterprise-A vai diretamente em busca do Big Boss. Ao contrário das anteriormente confrontadas, esta divindade seria, portanto, onipresente. Estando em todos os lugares ao mesmo tempo, não precisaria de uma espaçonave, como argutamente assinalado nesta inestimável produção...

Continua aqui: https://tavernadesmade.blogspot.com/2021/02/e-quanto-aos-deuses-parte-3.html










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