segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

E QUANTO AOS DEUSES? – PARTE 3

 

Continuamos com Star Trek. A Nova Geração (1987-1994) também tem sua cota de episódios de deuses-astronautas, inclusive um em que os humanos acabam sendo considerados como deuses. De um ponto de vista rigoroso, episódios como esse não deveriam existir. A Federação Unida de Planetas, em sua Primeira Diretriz, proíbe a interferência em planetas com culturas consideradas “primitivas” (Kirk, na Série Clássica, desobedecia a essa regra com regularidade). Aos cientistas federados permitia-se estudar planetas menos "avançados" se fossem usadas táticas para manter sua presença oculta. Mas bastou um acidente revelar a presença dos cientistas – e a Enterprise-D ser chamada para prestar socorro – para termos o capitão Picard adorado com um deus no episódio Who Watches the Watchers (1989). Como bom cidadão federado, ele recusa essa adoração. O resultado é um episódio que, mesmo sendo tributário de Däniken, ao menos problematiza o tema.


Devil's Due (1991) não é tão bem sucedido. Como vimos, é quase como se o trabalho da tripulação clássica da Enterprise, nos anos 60, tivesse sido o de confrontar e destruir deuses em nome de um conceito exaltado de liberdade. Para a exemplar tripulação da nova Enterprise-D, entretanto, tais enredos não são mais possíveis. Como Picard é mais respeitoso com as deidades alheias do Kirk, resta-lhe combater os diabos alheios, como ocorre neste episódio mediano.

A Nova Geração faz pouco uso de referências religiosas. Mas o gnosticismo não foi inteiramente deixado de lado. O personagem Q (que aparece pelo menos uma vez por temporada) como que cristaliza demiurgos das séries anteriores em um único personagem. Multifacetado e ambíguo, talvez pudesse ser melhor caracterizado como um trickster, ao lado de Loki e Exú, por exemplo. 

De qualquer forma, a sociedade federada é sempre apresentada como completamente secularizada – assim como outras sociedades de nivel técnico comparável, como a romulana e a cardassiana. Crenças religiosas caracterizariam, justamente, aquelas sociedades menos desenvolvidas socialmente e/ou tecnologicamente, como Klingons e Bajorianos. Se há alguma fé federada, é na própria Federação – aspecto que vem recebendo um tratamento um tanto saliente na recente Discovery. 

Esses comentários estão longe de esgotar os episódios do universo Star Trek com a temática dos deuses como alienígenas ou as muitas alusões ao tema. De fato, Deep Space Nine (1993 – 1999) está inteiramente estruturada sobre tais noções, que explora de forma original e aprofundada ao desdobrar as consequências de diferentes formas de interação entre adoradores e adorados ao longo do tempo. Há o relacionamento entre os Profetas do Templo Celestial e o povo de Bajor, por exemplo, que é apresentado como benéfico. Em contrapartida, há também o Domínio, que não hesita em “elevar” ou criar espécies destinadas à obediência cega, com consequências devastadoras.

Voyager (1995-2001) tem pelo menos dois episódios relacionados ao tema: Tatoo (1995) e False Profits (1996). Nenhum deles é particularmente original, mas são certamente muito divertidos.

Em suma, temos uma narrativa de 1899 – “europeu é cultuado como um semideus por africanos impressionados com suas tecnologias” – que migrou da literatura para as mais diferentes esferas, carregando consigo sua carga de preconceitos e racismo. Não cabe “culpar” Conrad: trata-se de uma complexa questão de representação que perpassa a cultura ocidental, como nos informa Edward Said em Cultura e Imperialismo (1993). No campo da FC, acabou por constituir-se em uma espécie de corolário da 3ª Lei de Clarke: se tecnologias avançadas são indistinguíveis de magia, os povos que as empregam são indistinguíveis de deuses. Não há evidências, todavia, para suportar a noção de que trata-se de uma proposição generalizável em um sentido científico: essa é falácia de Däniken. Mesmo assim, em Star Trek e outros casos, de vez ou outra ocorreu desse tropo florescer como uma narrativa instigante, capaz de oferecer alguns insights genuínos sobre o relacionamento entre culturas diferentes.

Tem a ver:

A história é outra - Leiber

E quanto ao paraíso? 

A propósito de Heinlein e da FC




Nenhum comentário:

Postar um comentário