terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A HISTÓRIA É OUTRA - FRITZ LEIBER

Alvíssaras! Um novo volume para a coleção: A História é Outra, de Fritz Leiber (Ed. Expressão e Cultura, 1973). Uma leitura desafiadora. Em um primeiro momento, parece tratar-se de um enredo semelhante ao da “guerra fria temporal” do seriado Star Trek: Enterprise, em que facções de um futuro distante tentam influenciar, em seu benefício, a história presente. Mas a guerra entre Serpentes e Aranhas, as facções descritas por Leiber, não é nada fria. O conceito de “integridade da linha temporal” não faz sentido em A História é Outra: se Roma precisa ser defendida dos bárbaros, porque não usar alguns dispositivos nucleares?

A medida que a narrativa avança, o leitor começa a impacientar-se. Misturam-se soldados romanos, hussardos, oficias nazistas, misturam-se localidades, idiomas, "fatos" históricos... mas o livro não parece estar se dirigindo para lugar algum. Em outras histórias envolvendo linhas de tempo paralelas, como O Fim da Eternidade (Asimov), O Homem do Castelo Alto (P. K. Dick) ou o já citado arco narrativo de Enterprise, o leitor/expectador recebe da narrativa pistas suficientes para localizar-se. Em A História é Outra, contudo, é em vão nos perguntarmos “que História é essa, afinal?”. Essa questão acaba se mostrando irrelevante para o desenrolar da narrativa.
A guerra entre Serpentes e Aranhas é descrita como um fenômeno de proporções cósmicas,  envolvendo seres conscientes de diferentes espécies além da humana. O detalhe é que apenas uma fração das criaturas inteligentes que está de fato alistada nas facções em conflito (como é o caso dos personagens da obra). A maior parte dos seres permanece ignorante do que se passa. Aqueles envolvidos conscientemente no conflito vivenciam seus efeitos de forma peculiar por estarem em posição de serem atravessados pelas constantes modificações no tempo. Em obras não-ficcionais, os tempos em que vivemos, ditos modernos, vêm sendo descritos através de imagens de fluidez ou mesmo de esfarelamento (como em Modernidade Líquida, de Z. Bauman, ou Tudo o que é sólido se desmancha no ar, de M. Berman). Essas imagens se aplicam muito bem às experiências dos personagens de A História é Outra. Sua própria identidade está em obrigatório estado de fluxo, em decorrência da instabilidade de seu universo. Estão conscientes da fragilidade da História, tal como a vivenciam. Se certo combatente nasceu, por exemplo, em uma cidade da fronteira entre França e Alemanha, a questão de sua nacionalidade é simplesmente sem importância: a linha da fronteira muda frequentemente, como consequência das constantes interferências. A ninguém ocorre discutir qual seria a "linha temporal original". A ordem das natural coisas, pelo menos para os que participam do conflito, é a bagunça temporal (e o leitor que lide com o que isso causa no texto). 
Até que acontece algo imprevisto: os personagens são subitamente cortados das influências da guerra temporal. Sua existência agora está vinculada a uma linha temporal específica e estável. Percebem que estão diante da oportunidade de voltar viver uma existência ordinária, como aquela que tinham antes de serem recrutados. Já que estão desligados das demandas das modificações constantes, poderiam estabelecer vínculos entre si, cultivar amizades, ser família... Acabam descobrindo que não é nada disso que desejam. Passam a ansiar pelas alterações da realidade que alteram constantemente suas biografias, memórias e referências. Não podem mais abrir mão de existir no Mundo Modificado, pois descobrem o regozijo de um cosmos imprevisível. 
A guerra temporal é somente um pretexto para que Leiber nos apresente uma visão do que seria a vida em um cenário sem absolutos, em que todos os aspectos da existência são relativos ou contingentes (ou pelo menos percebidos como tais). E mais: no entender de um dos personagens, os combatentes representam uma “quarta ordem da evolução”, o novo degrau da escada na vida, justamente por celebrarem a impossibilidade da constituição estável de suas próprias interioridades, a impossibilidade de um projeto fixo de futuro.  Se tivermos em mente quanta FC se escreveu supondo um certa direção da História que conduziria à formação de de impérios, federações, gaias, ecúmenos e etc., estaremos em condições de apreciar o quanto essa obra de Leiber é insólita e mesmo profética.  Neste caso, a história é outra, e o caos é o progresso.
 
Tem a ver:

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