A
história possui uma finalidade? Um rumo desejável ou "natural"?
Possui leis generalizáveis? No universo de Star
Trek, a resposta a essas perguntas parece ser "sim". Ao de
desenvolverem, as civilizações passariam por certos estágios, como a descoberta
da propulsão de dobra e a adoção de um governo planetário unificado, antes de integrarem
a Federação Unida de Planetas. E são oferecidos vislumbres do que seria o
futuro remoto da Inteligência: finalmente libertar-se do aguilhão da matéria e
da morte, a exemplo dos habitantes de Orgânia ou de Q.
Obviamente,
essa concepção dita “otimista” – de origem mítico-religiosa – não é exclusiva
de Star Trek, mas sim um esquema de
pensamento muito difundido. Por isso mesmo, o leitor de Duna não pode evitar alguns estranhamentos. Se, por um lado, Frank
Herbert nos mostra um futuro em que há “progresso”, com toda sorte de
tecnologias maravilhosas, por outro há um certo “primitivismo”. Temos, lado a
lado, naves gigantescas que vagam entre as estrelas e lutas corpo a corpo em
arenas com facas envenenadas. E, do ponto de vista social, temos um feudalismo
declarado em que as disputas entre casas nobres são reguladas por tradições de
sabor medieval. À primeira vista, Duna
parece mais convincente como metáfora de questões geopolíticas do presente
(especiaria X petróleo) do que como fonte relevante de reflexões sobre o
futuro. Como levar a sério a previsão de que chegará o dia em que máquinas
pensantes serão proibidas por força de um novo mandamento religioso? (“Não
criarás uma máquina para imitar a mente humana!”). É que tendemos a acreditar que sociedades
laicas são o futuro. A leitura de obras contemporâneas como Submissão (Houellebecq) bem poderia nos
convencer de que Duna tinha lá os seus momentos proféticos, no fim das contas.
Além
de desafiar uma certa concepção de progresso, Duna também dialoga com as
narrativas do colonialismo e do imperialismo. São aquelas que vem justificando
a tutela de um povo por outro a partir de algum conceito de superioridade
cultural. Sem pretender uma análise profunda como a que nos oferece Edward Said
(em obras como Cultura e Imperialismo), pode-se apontar que ideias presentes em
No Coração das Trevas (Conrad) ou Kim (Kipling) tornaram-se fórmulas da
FC. Todos reconhecemos o chavão dos nativos que adoram como deuses os
recém-chegados, ou o dos nativos que são aliciados a se envolverem nas disputas
militares de potências externas. Em Star Wars, principalmente nos episódios
animados, estes esquemas são mobilizados à exaustão: um planeta qualquer é
envolvido no conflito entre rebeldes e imperiais e os “nativos”, impressionados
pelo mambo jambo jedi, acabam auxiliando heroicamente os rebeldes (também
acontece de serem traidores desprezíveis e apoiarem o Império). Inclusive, há
movimentos religiosos amparados em tais ideias, como a Cientologia.
Logo
no início de Duna, quando a Casa
Atreides está se estabelecendo no planeta deserto Arrakis, Lady Jéssica não
perde tempo em impressionar a governanta fremen
(uma "nativa") com seus truques religiosos Bene Gesserit. Já Leto, o Duque, homem da razão, mostra-se
claramente desconfortável com esta estratégia em particular. Percebe claramente
que o jovem Paul, seu filho e herdeiro, vem sendo saudado como uma figura
messiânica pelos fremen, mas não
deseja aliciá-los através da fé. O seu plano é antes o de arregimenta-los – a
favor da Casa Atreides e contra a Casa Harkonenn – através de propaganda
exaltando as virtudes de sua administração.
Jéssica e Leto podem usar estratégias diferentes, mas seu objetivo é o
mesmo: subordinar os habitantes locais aos objetivos da Casa Atreides.
Talvez
o detalhe mais inadequado da adaptação televisiva de Duna, empreendida pelo canal SyFy,
se relacione justamente com este ponto. Assistimos na TV os Atreides
manipulando facilmente os “nativos” fremen,
que são apresentados como supersticiosos e suscetíveis. Na narrativa original,
as coisas não são tão simples, pois é Paul quem se torna afinal fremen, adotando a cultura deste povo e
o conduzindo a uma situação inédita de poderio político e militar. Torna-se
evidente que Paul, o jovem sucessor de Leto, não está realmente seguindo a
agenda de sua família, e nem se conformando inteiramente ao papel messiânico que
os fremen projetam sobre ele. Sua
atuação pauta-se pelo que ele mesmo chama de um “propósito terrível”,
constituído por uma teia de possibilidades, interesses e circunstâncias
radicalmente alheia aos seus anseios e planos iniciais. Como concluiu um dos
personagens de Duna, Kynes, o ecólogo
imperial: “os princípios mais persistentes do universo eram o acidente e o
erro. Até mesmo os gaviões sabiam que era verdade”.
Somente
levando em consideração as sequências de Duna
que a dimensão teleológica da narrativa de Herbert se torna mais evidente, e
passamos a entender melhor o que Paul queria dizer com “propósito terrível”. O
autor mostra-se muito interessado nos complexos entrelaçamentos entre poder e
ciência, na melhor tradição da FC, mas os situa em uma cadeia de
relacionamentos mais ampla, de ordem mais elevada. É na propagação e a
sobrevivência da espécie humana, em um sentido biológico e ecológico, que
Herbert situa o sentido da História. Não compartilha do platonismo dualista do
universo de Roddenberry, em que os seres mais “evoluídos” são aqueles que,
tendo passado por uma fase corpórea, agora são pura luz e informação. Em Duna e continuações, o corpo humano não
é apenas uma “casca”, um resquício animal ou uma etapa evolucionária a ser
superada. O corpo é o homem, e aperfeiçoar o homem é aperfeiçoar o corpo. É difícil
não se sentir perturbado com certas perspectivas descortinadas por Herbert
nessa direção, como programas de procriação seletiva. De qualquer forma, as
recentes transformações de nossa cultura em suas atitudes em relação ao corpo
mais uma vez nos incitam a considerar Herbert como futurologista.
Muitas dessas questões aparecem apenas de forma incipiente no volume Duna. Talvez por isso mesmo este livro, o primeiro de uma longa série
e bem-sucedida série, seja afinal amplamente considerado o melhor dentre todos.
Lendo-o isoladamente, podemos preservar a ilusão de que se trata de uma
história a respeito de um herói, Paul Atreides, e de que apesar de certas
bizarrices, Duna se acomoda a algum
padrão já conhecido ou mesmo arquetípico, como aquele em que um povo oprimido
encontra finalmente a libertação de seus opressores. Basta lermos O Messias de Duna, a sequência, e não
será mais tão fácil nos esquivarmos dos elementos perturbadores que turvam essa
simplicidade confortável. Mas este é
assunto para outro post.
Pós-Escrito (2020): Acabo de assistir a primeira temporada de Picard, o mais novo seriado da família Star Trek. Em certo sentido, tudo continua na mesma: o corpo continua a ser simples casca, o que conta é a "consciência", que pode inclusive ser transferida, pelo que aprendemos em Picard. Entretanto, no universo não-ficcional em que de fato vivemos, as coisas não são bem assim. A ideia de que a consciência ou nossos processo mentais seriam algo como o software do corpo, embora tenha tenha sido aceita como metáfora útil em certo contextos, está longe de ser consensual. Simplesmente não há acordo entre filósofos, neurocientistas e psicólogos dos mais diversos matizes (sem mencionar a controvérsia religiosa implicada). Pode-se inclusive argumentar que a própria consciência não passa de uma ilusão... Evidentemente, o universo Star Trek, ficcional como é, não tem necessariamente um compromisso com a representação cientificamente acurada. Se temos velocidade de dobra, teletransporte, o torpedo Gênesis, o Nexus e planetas cheios de humanoides por toda a galáxia, não chega a ser um problema que o show apresente concepções possivelmente equivocadas sobre a consciência. Duna (que seria o alvo principal deste post) também tem sua cota de fantasia, evidentemente. Mas algo parece ter mudado, sim, em Star Trek. O roteiro clássico de que o futuro da inteligência é libertar-se do corpo agora cede lugar ao delírio trans-humanista de que a inteligência humana pode ser transferida para computadores ou corpos robóticos. Claro, este é um tema recorrente em Star Trek, já aparece em "What are little girls made off", de 1966. Mas este episódio alertava muito propriamente sobre os problemas de tais delírios. Picard, em contrapartida, os celebra...
Tem a ver:
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