sábado, 24 de fevereiro de 2018

AS CANÇÕES DA TERRA DISTANTE


A maravilha, o assombro e o espanto estão no cerne do empreendimento literário. Arthur C. Clarke é um autor que não deixa esquecer disso: uma de suas especialidades é nos deslumbrar com máquinas colossais. Ocupou-se do malfadado Titanic, assunto de O Fantasma das Grandes Banquisas; idealizou naves espaciais gigantescas, como a alienígena Rama; concebeu uma cidade inteira autossuficiente e mecanizada, Diaspar, em A Cidade e as Estrelas. O monolito negro de 2001: Uma Odisseia no Espaço e sequencias talvez seja a criação suprema do autor nesse sentido (se o monolito não é colossal em suas dimensões, o é em suas implicações). As tramas muitas vezes são construídas a partir destes aparatos e do que pode dar errado com eles, como é o caso em As Fontes do Paraíso, obra que poderia ser resumida assim: “elevador espacial custa a vida de seu criador”.


         As Canções da Terra Distante não é exceção: o imensurável é parte importante desse livro em que o mar, outro tema caro a Clarke, está também presente. Nesse obra, em particular, não há uma maravilha tecnológica que sirva como carro-chefe: há muitas! Clarke não parece muito seguro do efeito de suas criações sobre o leitor, e assim inclui continuamente descrições de como essas maravilhas deveriam impactá-lo. Por exemplo, além de descrever em termos grandiloquentes os efeitos pirotécnicos do “ramjato quântico” da nave estelar Magalhães na atmosfera de Thalassa, descreve também como os habitantes locais reagiram, quão emocionante foi, e assim por diante. Mas confesso nesse caso o kitsch não me incomoda tanto assim. A grande variedade temática presente neste livro permite que o autor se pronuncie, alegadamente em nome da ciência, sobre uma ampla variedade de tópicos. É leitura muito interessante, senão como literatura, como documento do cientificismo.
O tema principal é o encontro entre as pessoas de Thalassa, uma comunidade humana até então isolada, e a tripulação da nave Magalhães, representante do tronco principal da humanidade. O detalhe é que a colonização de Thalassa deu-se através de uma semeadora automática, em um processo que permitiu que toda a sorte de ideias consideradas “perigosas” fosse expurgadas da cultura local.  Uma vez que todas as referências ao ciúme foram expurgadas da literatura, ninguém o conhece, e o planeta tem uma vida sexual florida. Como nunca ouviram falar de guerra, nunca a descobriram, e o planeta é pacífico. Como nunca ouviram falar de Deus, não tem religião, e assim por diante... Temos uma sociedade “perfeita”.
Chegou o momento de confrontarmos o autor. Há uma espécie de prefácio à obra em que Clarke esclarece o seu leitor de que ele tem mãos uma obra verdadeira de FC, bem fundamentada, e não um exemplar inferior do gênero como Star Trek ou Star Wars (esses são exemplos citados por Clarke!). Pois bem: a censura cultural imposta em Thalassa é defendida com o argumento de que apenas uma pequena percentagem do comportamento humano é determinada pela biologia, e a cultura seria o ponto chave. Ora: de onde ele tirou essa informação? Pois, como vem sendo abundantemente demostrado, cultura é biologia.  Mr. Clarke, onde está a evidência de um bom “reset” cultural é a solução para os problemas humanos? Há entusiastas da hard science que não enxergam para além das ciências ditas exatas, frisando sempre que podem que o som não se propaga no vácuo e que as explosões nas batalhas espaciais deveriam ser silenciosas, mas desconhecendo amplamente os saberes das ciências sociais e biológicas.
A leitura de As Canções da Terra Distante evocou-me ainda Theodor Adorno, justamente um pensador social, e seu artigo Bach defended against his devotees. Não creio que tenha sido traduzido para o português, mas uma das ideias deste texto é que a idolatria em torno de Bach (bem como em torno de outros “clássicos” da música) teria como efeito impedir o reconhecimento do trabalho de compositores posteriores. Pois bem: de acordo com Clarke, mesmo depois do ano 4.000 D.C. Bach e Beethoven ainda serão reconhecidos como os maiores compositores de todos os tempos e todos os lugares do universo conhecido.  Parece que Adorno tinha razão, afinal...
Essas críticas mal-humoradas não representam, de forma alguma, uma condenação do livro que inspira essas linhas. Como já adiantei, a multiplicidade de temas torna-o, em minha opinião, leitura muito aprazível, embora menos profundo que outros livros de Clarke. Muitas críticas do autor atingem muito bem os seus alvos, e há passagens extremamente divertidas, como a descrição da seita gnóstica dos Neo-Maniches, que amparava sua argumentação com Teologia Estatística.  Clarke é um dos autores do “centro” da FC, nos termos que tenho discutido por aqui, e um futurologista dotado quando se trata de antecipação de tecnologias.  
 
Tem a ver:
 



        

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