O ARTISTA DE GÊNERO
The Genre Artist - Carlo Rotella
(2009)
Original:
https://www.nytimes.com/2009/07/19/magazine/19Vance-t.html
Traduzido por Marcelo Rabello dos
Santos (out. 2022)
Jack Vance, descrito por
seus pares como autor genial e o maior escritor vivo de ficção científica e fantasia,
está escondido à plena vista enquanto publica – seis décadas e contando (Nota do tradutor: Jack Vance faleceu em
2013). Sim, ele foi premiado com o Hugo,
o Nebula e o World Fantasy, foi nomeado Grão-Mestre pela Science Fiction and Fantasy Writers of America e recebeu um Edgar da Mystery Writers of America, mas tais honrarias somente contribuem
para camuflá-lo, como se Vance fosse apenas mais um bem-sucedido autor de nicho. Também contribuem para esta ocultação as capas de seus
livros, recheadas de clichês – espaçonaves, monstros e eufônicas designações de
localidades: Lyonesse, Alastor, Durdane. Se você nunca leu Vance e está vasculhando
a prateleira de uma livraria, pode não ter nenhum motivo específico para
escolher um de seus livros ao invés daqueles de A. E. van Vogt ou John Varley.
E se você escolhesse alguma dessas outras obras, seguiria por tranquilamente
pelos caminhos habituais da FC sem ter a menor ideia de que acabou de perder um
encontro com uma das vozes mais distintas e desvalorizadas da literatura estadunidense.
Ou, pelo menos, é assim
que os fãs de Vance o veem. Entre eles estão autores que conquistaram fama e
recompensas financeiras das quais Vance nunca desfrutou. Dan Simmons, escritor de
best-sellers de horror e fantasia,
descreveu seu encontro com Vance como uma revelação, comparável à
descoberta de Proust ou Henry James. Comparou a experiência a ser jogado direto
na água de uma piscina, sem aviso: do nada, através de sua linguagem perfeitamente
apurada, a prosa de Vance imerge o leitor em um novo mundo. Para Simmons, se Vance tivesse
nascido ao sul da fronteira, estaria concorrendo a um Prêmio Nobel.
Assim me disse Michael Chabon, autor de
distinta reputação – o que permite-lhe empregar fórmulas populares sem ser
rotulado como um escritor de gênero: “Jack Vance é o caso mais doloroso, dentre
todos os escritores que amo, de um que não recebe o crédito que merece. Se The Last Castle ou The Dragon Masters fossem assinados por Italo Calvino, ou apenas um
nome estrangeiro, seriam recebidos como profundas reflexões, mas porque ele é
Jack Vance e é publicado em revistas de segunda, existe essa barreira intransponível.”
A barreira não se mostrou
intransponível para outros escritores de gênero – como Ray Bradbury e Elmore
Leonard, que conquistaram o respeito da crítica ao mesmo tempo em que criavam
produtos literários confortavelmente inofensivos, ou como H. P. Lovecraft e
Raymond Chandler, escritores pulp
cuja reputação póstuma aumentou com o tempo e que eventualmente adquiriram o status de produtores de alta cultura.
Mas cada um desses escritores, não importa quão inovador ou poético, ingressou no
mainstream literário através da plena
exploração das potencialidades do gênero de sua especialidade. Vance, por outro
lado, trabalhou inteiramente dentro de formas populares, mas sem prestar muita
atenção às suas convenções ou exclusividades. Sua ênfase recai sobre a nota
inesperada, a batida estranha. Seus foguetes são apenas pretextos para deslocar
os personagens de uma sociedade convincentemente imaginada para outra; quando
se trata de cenas de batalha ou outros cenários potencialmente eletrizantes, ele prefere resumi-los sucintamente; seu maior prazer está
na musicalidade do texto, que ele emprega para explorar a abundante capacidade da
humanidade para a patifaria. Um exemplo: “Ao aproximar-se dos campos mais
afastados, movia-se cautelosamente, esgueirando-se entre as moitas e as árvores,
e logo encontrou o que procurava: um camponês revirando o solo úmido com uma
enxada. Cugel avançou silenciosamente e abateu o incauto com uma raiz retorcida”.
Mesmo que Vance possa jogar pelas regras de qualquer gênero em que trabalhe,
seu verdadeiro gênero é a narrativa de Jack Vance.
Seus leitores leais são
ferozmente apaixonados. Foi por uma iniciativa dos leitores que uma equipe se
reuniu no final da década de 1990 para compilar a Vance Integral Edition, um belo conjunto de 45 volumes das obras
completas em edições anotadas definitivas. Liderados por Paul Rhoads, um pintor
americano que vive na França (cuja recente avaliação crítica de Vance, “Winged
Being”, o compara a Oswald Spengler e Jane Austen, entre outros, e o unge como
o anti-Paul Auster), os voluntários da V.I.E.
compararam meticulosamente as edições e os rascunhos do autor para restaurar a
prosa corrompida pelos editores. Vancianos hard-core
também criaram a Totality
(pharesm.org), um site onde você pode pesquisar o texto completo da V. I. E. e assim
descobrir, por exemplo, que ele usou a palavra “punctilio” exatamente 33 vezes
em sua prosa publicada. Foi uma demonstração extraordinária de verdadeiro amor dos
leitores – um bando de aficionados dando a um escritor de gênero contemporâneo,
em seu próprio tempo, o mesmo tratamento dispensado a um Shakespeare.
Vance, que tem 92 anos,
diz que seu novo livro – um livro de memórias, “This Is Me, Jack Vance!” –
definitivamente será o último. Também chegará em breve às livrarias “Songs of
the Dying Earth”, uma coleção de histórias de outros escritores ambientadas no cenário
de futuro longínquo que Vance introduziu em algumas de suas primeiras histórias
publicadas, originalmente rabiscadas em uma prancheta no convés do um cargueiro
no Pacífico Sul enquanto Vance servia na marinha mercante durante a Segunda
Guerra Mundial. A lista dos que contribuíram para esta coleção inclui estrelas
da FC e autores de best-sellers,
entre eles Simmons, Neil Gaiman, Terry Dowling, Tanith Lee, George R. R. Martin
e Dean Koontz. É como um tributo musical no qual os criadores reconhecem
a influência de um tesouro nacional respeitável e semiobscuro ao fazer covers de suas canções.
Agora você pode estar pensando: se Vance é tão bom quanto Simmons, Chabon e Rhoads dizem que ele é, e se ele se recusou a ceder às exigências dos gêneros em que trabalhou, então talvez ele tivesse se saído melhor se tivesse explorado formas que melhor recompensassem seus pontos fortes. Não é uma pena que ele tenha se limitado a gêneros adolescentes nos quais seus talentos não pudessem realmente brilhar? Mas creio que essa pergunta estaria errada em seus pressupostos: errada sobre Vance, sobre o conceito de gênero e sobre o que “adolescente” e “adulto” significam quando falamos de sensibilidade literária.
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Quando eu tinha uns 14
anos, no final dos anos 70, tinha um colega descolado que conhecia coisas mais
legais do que tudo que seus amigos estivessem ouvindo, fumando ou lendo. Na
época, estava impressionado comigo mesmo por ter me movido de Tolkien para E.
R. Eddison e Michael Moorcock. "Coisa de criança", disse-me o tal
colega. “Tente isso.” Ele me entregou uma cópia em brochura de Eyes of the Overworld de Vance. Na capa,
uma criatura gigantesca, parecida com um lagarto, tombava sobre um barco a remo
contendo um homem em trajes convencionais de espada e feitiçaria e uma mulher
rechonchuda em trajes de banho reveladores.
Lembro-me das linhas
exatas da segunda página como aquelas me cravaram o anzol para sempre, um diálogo
entre dois feirantes de curiosidades mágicas em um bazar:
“‘Posso resolver sua
perplexidade’, disse Fianosther. — Seu estande está sobre o local de um antigo patíbulo e
absorveu essências de azar. Não pude deixar de notar que você estava observando
a maneira como as madeiras da minha cabine são seladas de forma a evitar tal
infortúnio. Você obterá uma visão melhor se entrar, mas primeiro permita-me
encurtar a corrente do erb cativo que
percorre as instalações durante a noite.'
— Não é necessário —
disse Cugel. — Meu interesse era transitório.'"
A polidez ferina e
sinistra, o casamento da linguagem pomposa com os motivos baixos, o modo como
as frases cortadas de Cugel completavam as ornadas de Fianosther — senti-me
aprisionado pelo estilo de um escritor de uma maneira que nunca havia
experimentado antes. Vance nem precisou descrever o “erb cativo”. A frase em si evocava fileiras de dentes e a força
terrível de um corpo longo e musculoso.
Mais adiante, encontramos
Cugel em Smolod, uma vila cujos habitantes usam cúspides oculares mágicas que
transformam seu ambiente fétido em um de aparente esplendor. As cúspides são
relíquias da incursão do demônio Unda-Hrada do submundo La-Er durante as
Guerras Cutz do 18º Aeon. “Lembro-me vagamente de que habito um chiqueiro e
devoro a comida mais grosseira”, admite um ancião, “mas a realidade subjetiva é
que habito um palácio glorioso e janto esplêndidas iguarias entre os
príncipes e princesas que são meus pares”. É uma configuração típica vanciana:
alguns traços conceituais ousados, descrições maduras e nomes evocativos
combinam-se para realizar plenamente um lugar bizarro que parece real — isso porque
a linguagem substancial o dota de presença, mas também porque todo leitor vive
em um lugar um pouco como este.
Cugel consegue roubar uma
única cúspide antes de fugir de Smolod à frente de uma multidão enfurecida. É
apenas sua primeira aventura em sua jornada pela terra agonizante, um reino de
maravilhas cínicas em que os últimos exemplares da civilização humana tratam do
antigo negócio de mentir, trapacear e roubar para satisfazer seus desejos vis enquanto
o sol enfraquecido vacila em direção às trevas finais.
Li o livro tomado por um delírio
extasiado e fui procurar mais. Além da fantasia picaresca, Vance escreveu
fantasia científica, romance planetário, mistério extraterrestre, sagas de
vingança e também contos de aventura especulativa menos classificáveis. Seus
trabalhos abrangem desde o conto até romances em vários volumes. Além disso,
ele escreveu 11 mistérios sob seu nome de batismo, John Holbrook Vance, e mais
três sob o pseudônimo flutuante de Ellery Queen. Por um breve período no início
de sua carreira atuou como escritor da série de televisão Captain Video, e ao
longo dos anos várias de suas histórias foram produzidas, mas Hollywood não
abocanhou seu trabalho como abocanhou, digamos, o de Philip K. Dick. Parte da
falta de interesse de Hollywood por Vance pode ser atribuída a uma leitura
simplista dele como um estilista barroco cuja escrita depende principalmente da
linguagem para alcançar seu efeito, e não do enredo, personagem ou premissa.
Vance acredita que o
fluxo musical da linguagem é muito importante para contar histórias – “a prosa
deve balançar”, ele me disse mais de uma vez – mas algum problema social ou
cultural sempre se move por trás da ação, convidando o intelecto a parar e
considerar. As Linguagens de Pao, por
exemplo, desenvolve a proposição de que a linguagem de um povo pode ser
manipulada para torná-lo mais belicoso; O
Planeta dos Dragões busca uma analogia entre manipulação genética e sofisticação
estética. Ele também poderá silenciar ou sabotar a ação com uma tirada
psicológica bem colocada. Depois de caçar um dos gênios do mal que massacraram
sua família, o herói do ciclo dos Príncipes Demônios mostra-se tão combalido
que sua companheira pergunta se ele está bem. “Muito bem”, ele responde nas
linhas finais do quinto e último romance. “Esvaziado, talvez. Fui abandonado
pelos meus inimigos. Treesong está morto. O assunto está encerrado. E eu estou
terminado." Raramente um herói de FC alcança a linha de chegada com tão
pouco estrépito.
A trama intrincada não é
o forte de Vance, mas ele habilmente recombina certos elementos: os ritmos da
viagem; os prazeres da música, bebedeira e vingança; encontros melindrosos com
pedantes, salteadores, estetas e fanáticos com pendores violentos, rufiões, patifes
de todos os tipos e jovens esbeltas com o hábito enigmático de olhar para trás
por cima dos ombros. Suas histórias sustentam um impulso anedótico em que se equilibram
o prazer digressivo de imaginar um mundo e o efeito hipnótico de seu tom
peculiar, tom este que tem sido descrito de diferentes formas: farpado,
aveludado, forçado, mandarinesco.
Mesmo com todas as brincadeiras
e palavras inventadas, a leitura de Vance constitui uma experiência imbuída de
certa formalidade, como se o leitor estive presente em um evento acadêmico de
grande seriedade. E ensina uma lição duradoura sobre o ofício do escritor: o
que quer que esteja na capa, você sempre pode mirar mais alto.
Acontece que a minha reação
inicial à prosa de Vance, em idade impressionável, é bastante bastante comum. Alguns dos célebres fantasistas que contribuíram para Songs of the Dying Earth me contaram
histórias semelhantes.
Dan Simmons tinha 12 anos
quando seu irmão mais velho o deixou ler O
Planeta dos Dragões, na ocasião memorável em que se sentiu atirado na piscina.
Neil Gaiman tinha 12 ou 13 anos quando se deparou com um conto de A Agonia da Terra. “Eu me apaixonei pelo
estilo de prosa”, disse Gaiman. “Era elegante, inteligente; cada palavra
parecia saber o que estava fazendo. É engraçado, mas nunca, nunca perde a
compostura.”
Tanith Lee me disse que
aos 20 e poucos anos ela era “uma grande desajustada, de coração melancólico”,
e que já sabia então que queria escrever. Sua mãe a presenteou com A Agonia da Terra, o que a motivou ainda
mais a explorar o universo da literatura. “Adorei o humor negro, a elegância, e
adorei a pura maldade. E quando cheguei a Cugel, eu o amei. Ele era uma tábua
de salvação.” Depois que conversamos, ela me enviou um e-mail com uma de suas
citações favoritas de Vance: “Eu daria os parabéns, não fosse esse tentáculo
segurando minha perna”.
Michael Chabon tinha 12
ou 13 anos quando leu “The Dragon Masters”. Ele coloca Vance “em uma autêntica
tradição americana que é importante e poderosa, mas menos reconhecida. Não é a Twain-Hemingway;
é mais a tradição de Poe, uma mistura de refinamento europeu com uma atitude de
um cowboy pronto para a briga.
Imagino um marinheiro, de camisa azul, jeans e gorro, sentado no convés de um
navio no Pacífico Sul, antevendo, um milhão de anos no futuro, um mundo
detalhado e agonizante. A prosa não é apenas rarefeita como bastante madura.
Vance tem força narrativa, uma vontade de olhar com frieza para a violência e a
crueldade, de não se esquivar.”
Chabon contrastou Vance com
Tolkien e C. S. Lewis, “autores britânicos que compartilhavam entre si um
grandioso impulso de sintetizar a mitologia de uma cultura. Não há nada disso
em Vance. O engenheiro nele está sempre à vista. É também um criador de histórias
de aventura, como os britânicos, mas suas narrativas são sempre quebra-cabeças
de resolução de problemas. Traz sempre algo dessa estrutura ‘se A é igual a B,
então...', como um silogismo. Vance tem aquele amor à lógica de Poe, um
espírito de engenharia ianque, casado com um amor erudito pela pompa e o
pedantismo. E ele tem um ouvido incrível, escreve lindas sentenças.”
A maioria desses escritores eram adolescentes quando leram Vance pela primeira vez, o que despertou neles o apreço pelas possibilidades artísticas da linguagem. Literatura adolescente não precisa significar apenas uma prosa rasteira que explora a forte evocação dos sentimentos, destinada aos emocionalmente inexperientes. Pode também significar uma escrita que inspira os primeiros despertares conscientes da sensibilidade literária. Então, sim, Vance trabalhou exclusivamente em gêneros juvenis – se nessa rubrica incluirmos a experiência transformadora de se apaixonar pela primeira vez por uma bela frase.
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Vance vive nas colinas de
Oakland, em uma casa que ele demoliu e reconstruiu ao longo dos anos de forma
idiossincrática. Ele tem reputação de recluso, e os encontros entre estranhos
em suas histórias são muitas vezes truculentos. (Um diálogo entre um cliente e um
funcionário: “Seus métodos estão incorretos. Como entrei no recinto primeiro,
você deveria ter atendido primeiro minhas demandas.” O funcionário pisca e
responde: “A ideia, devo confessar, tem uma ingênua simplicidade a seu favor.”)
Enquanto subia a calçada íngreme em uma tarde cinzenta de inverno e um cachorro
grande latia à minha aproximação, tentei banir a expectativa irracional de que
Vance e eu trocássemos diálogos vancianos. Eu: “Por que você insistiu em escrever
bolodórios da variedade mais trivial para infantilóides obtusos?” Ele: “A questão
é nuncupatória. Estou cansado de suas importunações. Vá embora.”
Mas ele foi gentil e me
presenteou com histórias sobre suas aventuras nos mares do sul. Estava sentado
em uma cadeira de balanço em sua escrivaninha, agasalhado contra o frio por um
blusão e um gorro, com um cobertor nos ombros e um aquecedor nos pés com
chinelos. A velhice o curvou e o diminuiu, mas sua voz profunda ainda carrega
um tom de autoridade. Ele passa seus dias em sua mesa, ouvindo mistérios em
fita (ele é cego desde os anos 1980), falando ao telefone quando alguém liga,
ouvindo ou tocando o jazz tradicional que ele adora. Em certo momento, durante
a visita, ele puxou um ukulele barítono da prateleira de instrumentos de corda
atrás dele e dedilhou despojadamente enquanto trauteava uma enérgica cantiga
galante. Ele também toca – ou tocava – gaita, washboard, kazoo e
corneta.
Ao contrário de muitos de
seus personagens, que estão sempre se gabando (“Sou versado em quatro infinitos
e ocupo um assento no colegiado”), Vance se apresenta como um sujeito prático e
realista. Desviou das minhas perguntas
sobre as cartas de fãs em seus arquivos – recebidas de gente como a jovem Le
Guin, o zilionário de software Paul Allen e o designer de jogos Gary Gygax,
cujo Dungeons & Dragons deve
muito a Vance. Preferiu antes explicar-me como em certa ocasião levantou uma
casa flutuante usando um compressor de ar e oito tambores de 200 litros.
Vance nunca ficou rico,
mas ganhou o suficiente para sustentar sua esposa, Norma, que morreu no ano
passado após 61 anos de casamento, e seu filho, John, agora engenheiro. A
família viajava com frequência para locais exóticos – Madeira, Taiti, Cidade do
Cabo, Caxemira – onde se hospedavam em acomodações baratas por tempo suficiente
para que Vance escrevesse outro livro. “Ficávamos escondidos por algumas
semanas, às vezes meses”, John me disse. “Ele tinha sua prancheta; ela tinha a
máquina de escrever portátil. Ele escrevia à mão e ela datilografava. Primeiro
rascunho, segundo rascunho, terceiro rascunho.”
Ter uma boa vida como
escritor era extremamente importante para Vance, que nasceu em uma família de
São Francisco que passou por momentos difíceis. Crescendo durante a Grande
Depressão na granja de seus avós em Little Dutch Slough, na zona portuária a
leste da cidade, ainda cedo desenvolveu seu amor por veleiros, pela destreza
manual e pela ficção. Admirava os contos marcianos de Edgar Rice Burroughs
sobre John Carter e esperava ansiosamente, todos os meses, que chegasse pelo
correio a última edição de Weird Tales,
a revista pulp que apresentava
escritores seminais de fantasia como Lovecraft, Robert E. Howard, C. L. Moore e
Clark Ashton Smith. Vance frequentou a Universidade da Califórnia, em Berkeley,
mas sua educação prática como escritor veio da leitura de pulps e de obras como a série Oz
de L. Frank Baum, as histórias educadas de Jeffery Farnol, e a comédia leve de
P. G. Wodehouse – seu herói literário.
Além do domínio dos
efeitos de tom e uma propensão para criar megeras formidáveis, Vance parece ter
pouco em comum com Wodehouse, em especial no que diz respeito à sua apreciação
da natureza humana. Os personagens de Vance compartilham uma qualidade sombria
e gananciosa, sem hesitarem perante a crueldade. Em Araminta Station, o primeiro romance de sua trilogia eco-política
Cadwal, Vance cita “The Worlds of Man”, um estudo divulgado pelo Instituto
Fidelius: “Em nossas jornadas de uma extremidade do braço Gaeano à outra e, às
vezes, no Além, não descobrimos nada que indique que a raça humana está em toda
parte e inevitavelmente se tornando mais generosa, tolerante, gentil e esclarecida. Absolutamente nada.” Vance contou-me que ele e sua família sempre encontraram boa acolhida
e companhia em suas andanças, comendo e bebendo do bom e do melhor e enchendo
os olhos com a beleza do mundo. Então, o que inspirou a maldade interpessoal
pandêmica em sua escrita? Ele se recusou a especular, mas seu filho me disse:
“Acho que isso veio de quando a família perdeu todo o dinheiro, e tiveram de lidar
com todo o tipo de gente. Os tempos eram difíceis, as pessoas eram rudes. Meu
palpite é que esse padrão vem de suas experiências em seus primeiros dias, na
Califórnia e na marinha mercante.”
Vance se orgulha de seu
ofício, mas evita discuti-lo em detalhes. Quando rememora sua vida, mergulha profundamente
no passado, fazendo com que toda a discussão sobre o êxito de sua carreira literária
se resuma a um breve capítulo final. Jeremy Cavaterra, um compositor que mora
em um apartamento anexo à casa de Vance e ajuda a cuidar dele (e que foi
recrutado como fã ardoroso ao ler The
Eyes of the Overworld aos 14 anos), comentou essa reticência: “Pelo menos em parte,
ele é como um mágico que não deseja revelar seus truques, mas também é verdade que ele
escreve intuitivamente e evita racionalizar demasiadamente essa atividade.”
A persistente resistência
de Vance em falar de si mesmo como um fantasista também pode remontar à própria
adolescência do autor, quando chegou ao ensino médio muito jovem depois de
pular de ano. O jovem desajeitado com um mundo inventado na cabeça é um personagem
recorrente em sua escrita, assim como a cena de garotos populares atormentando
a um solitário. O mais prolífico homicida dentre seus estranhos sonhadores é
provavelmente o Príncipe-Demônio Howard Alan Treesong, que discursa nas vozes múltiplas
de avatares imaginários e aterroriza uma reunião escolar. Norma costumava dizer
que seu marido era Treesong. Já para John seu pai prefere pensar em si mesmo
como um Cugel, mas menos covarde. Junte-os, o sonhador Treesong e o malandro
Cugel, e você terá Vance, cuja longa carreira cresceu a partir de uma
descoberta da juventude: a de como transformar devaneios ociosos em arte
intencional, e arte em produção remunerada.
Em um certo momento da
visita, Vance começou a perder as suas palavras. Gesticulou em direção ao seu
bar e disse: “Vá tomar um gole de uísque puro malte”. Então ele riu e acrescentou:
“Há uma palavra que não consigo me lembrar para descrever isso. Tem um senso de
domínio estético, de comando, mas também um sentido de pensar bem de si mesmo.”
Sua velha favorita punctílio veio à mente, assim como hauteur (listada 16 vezes no Totality),
mas como nenhuma das duas parecesse ajustar-se precisamente à definição, achei
melhor não dizer nada. É que, durante nossa conversa, Vance já havia desdenhado
várias pessoas (incluindo dois célebres escritores de ficção científica que eu
cresci lendo) como idiotas ou exibicionistas. Oferecer a palavra errada poderia
ter me qualificado como ambos. Fui pegar minha bebida, enquanto ele continuava
a vislumbrar os contornos da palavra que perdera. Pode não estar perdida para
sempre, entretanto. Bem pode ressurgir ainda na prosa de Michael Chabon ou na
dos colaboradores de Songs of the Dying
Earth ou ainda na de Ursula Le Guin. Talvez até na minha.
Tem a ver:
Marune: Alastor 933 - Jack Vance
Obra de Jack Vance em Português
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