Antigos pensadores postulavam que a
arte era o marcador da diferença entre o humano e o animal. Era o exercício da arte
– intermediado pelas musas – que aproximava a humanidade da esfera divina, afastando seus praticantes da bestialidade. Mas como reagiriam os que pensam assim se
encontrassem, em outros mundos, criaturas fisicamente semelhantes aos animais,
mas dotadas de sensibilidade estética?
Essa
é questão de fundo proposta por Lloyd Biggle Jr. em Luz de Outra Dimensão
(Hemus, 1981). Nessa obra, encontramos a humanidade espalhada por diversos
planetas, muitos deles habitados por espécies inteligentes nativas chamadas
depreciativamente de “animalóides”. Entretanto, quando as recentes populações humanas destes mundos distantes começam a descobrir os dotes artísticos dos “não-humanos”, o resultado é o assassinato em massa das populações "animalóides" nativas.
Tenho
um carinho especial por Lloyd Biggle Jr. por criar FC sensível aos temas culturais.
A música, por exemplo, tem lugar de destaque em Trombetas da Revolução
(n. 174 da Argonauta). E apesar de ser previsível – já
sabemos nas páginas iniciais quem vai se casar com quem etc. –, suas obras não têm
o sabor burocrático daquelas de, digamos, Asimov. Mesmo quando há morticínio e fome, como é o caso de A Guerra dos Fantasmas (n. 168 da Argonauta), sempre
podemos contar com uma narrativa de certa leveza e final
otimista.
Infelizmente, Luz de Outra Dimensão não atinge este equilíbrio. A conclusão da obra – que retrata uma festa de noivado – parece forçada, deslocada, em uma narrativa sobre genocídio. É uma narrativa sobre pinturas e seus criadores, mas o autor trata os muitos
personagens humanos que são pintores de forma caricatural e em alguns casos hostil. Os artistas “não-humanos” são retratados de forma mais favorável, em especial o grande pintor Franff,
que acaba se transformando em uma figura messiânica ao dedicar-se à pregação dos
diretos dos “animalóides”. É uma narrativa que propõe um grande número de tramas, cenários e personagens, mas que falha em articulá-los com clareza.
Na
primeira vez que li este livro – lá pelos meus vinte anos – tive muita
dificuldade em terminá-lo. Julguei, na época, que tal se devia às minhas
dificuldades como leitor. Agora, ao relê-lo vinte anos depois, percebo que a
narrativa é de fato confusa – o que é certamente infeliz, pois os temas
abordados são da maior relevância. A questão das diferenças cognitivas entre a
espécie humana e as demais vem recebendo um novo impulso graças – talvez paradoxalmente
– ao novíssimo campo de estudo da inteligência artificial.
Foi
Descartes, no séc. XVIII, quem atualizou antigas especulações filosóficas
indicando, como modelo de inteligibilidade dos animais, os maquinismos. Somente
o homem seria capaz de pensamento real, enquanto o comportamento de um gato seria melhor entendido pela analogia com um previsível relógio de parede. Mas
hoje pretendemos que máquinas possam vir a apresentar – ou pelo menos simular –
atributos cognitivos humanos. Segue-se que, se não mais aceitamos uma descontinuidade
total entre o homem e máquina, também não a aceitamos entre homem e animal.
Até
aonde sabemos, as demais espécies animais espécies de nosso planeta não produzem
arte – o que seria de se esperar, já que o conceito de arte é um tanto
restritivo. Dependendo do conceito adotado, acabamos descobrindo que “arte” se
refere tão somente ao trabalho de uns poucos em algum lugar durante um certo período.
Por exemplo, a narrativa dos três Bs – “a verdadeira arte musical começou com
Bach, continuou com Beethoven e terminou com Brahms” – e outras pérolas do
gênero. Superando vieses humanocêntricos, entretanto, muitos pesquisadores vêm
investigando a cultura dos animais: as ferramentas dos primatas, as canções das
baleias, os dialetos das aves. Podemos criticar a realização literária de Luz
de Outra Dimensão, mas temos de reconhecer sua pertinência filosófica.
Tem a ver:
Notas de um Mochileiro das Galáxias
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