domingo, 13 de fevereiro de 2022

A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO: NOTA SOBRE LE GUIN E FOUCAULT

            Acabei de reler minha velha edição, publicada pelo Círculo do Livro em meados de 1985, de A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin. Aliás, bela edição, com boa tradução e capa dura, que vem sobrevivendo galhardamente aos maus tratos que impinjo aos meus volumes. Não abordarei aqui este texto como precursor das questões contemporâneas de gênero e sexualidade – o que certamente é! – , já que outras e outros o fazem bem melhor do que seria capaz (como aqui: https://www.momentumsaga.com/2022/02/resenha-a-mao-esquerda-da-escuridao-de-ursula-le-guin.html ). Em vez disso, pretendo apontar um outro eixo essencial da obra, aquele que diz respeito aos contrastes que Le Guin cuidadosamente estabelece entre duas nações do planeta ficcional Gethen, Karhide e Orgoreyn, com o objetivo de investigar e criticar fenômeno da Modernidade aqui da Terra.

O que move a narrativa é a missão de Genly Ai, um enviado do restante da humanidade – representada por um Conselho Ecumênico – ao planeta Gethen: persuadir as nações do planeta, até então ignorantes de seus primos alienígenas, a uma aliança. O enviado Ai dirige-se primeiro ao reino de Karhide, uma monarquia pomposa e um tanto caótica. Desiludido, Ai acaba indo para Orgoreyn.

Orgoreyn é uma nação em pleno processo de modernização. A instituição central da civilização orgota é a "comensalidade", que Le Guin imagina e descreve com muita propriedade como foco disciplinador da sociedade de Orgoreyn. Evidencia-se um paralelismo entre Le Guin e o pensamento do filósofo Michel Foucault. A modernidade é vista por ambos, Le Guin e Foucault, como um processo de sujeição, em que o sujeito moderno é formado por seu enquadramento a instituições sociais disciplinadoras – o que corresponde necessariamente à criação de instituições de internamento para os não-enquadráveis, tais como o hospício e a prisão, estudados por Foucault. Le Guin, diversas vezes ao longo do texto, salienta a diferença entre o sujeito de Orgoreyn – cuja existência é extensamente colonizada pelo poder – e o de Karhide – comparativamente mais “livre”.  

             A grande ironia é que o enviado Ai – ao desgostar da anárquica Karhide e mover-se para a progressista Orgoreyn – acaba por ter uma experiência pavorosa com o “lado B” da Modernidade:  ele mesmo é declarado como não-enquadrável, preso e enviado para um dos “campos da morte” – do qual eventualmente acaba por evadir-se com grandes sacrifícios. Ao fim da narrativa acaba por retornar ao ponto de partida – a “primitiva” Karhide, governada por um rei insano – e é esta nação que acaba por receber se abrir ao contato extraplanetário.

     Se quiséssemos recontar essa história aqui na Terra, seria algo assim: Genly Ai chega em Brasília, onde causa sensação mas atinge poucos resultados. Frustrado, vai para Washington. Quem sabe nos EUA, país de "primeiro mundo", sua mensagem seja ouvida! Após um aparente sucesso inicial, é enganado e aprisionado por alegadas razões de segurança nacional. Consegue escapar, e volta com rabo entre as pernas ao Brasil. É essa aguda consciência de que o “progresso” pode ter um “lado B” (por exemplo, a vigilância estatal constante) que afasta Le Guin da FC “standard” da chamada Era do Ouro, e a aproxima da sociologia de Foucault em “Vigiar e Punir” (1975).

            Quem leu A Mão Esquerda da Escuridão sabe que esse aspecto que estou discutindo simplesmente não é o mais impactante da obra. O leitor contemporâneo frequentemente encontra maior estímulo nas questões de gênero e sexualidade apresentadas por Le Guin. Mas tudo se relaciona: não é o por acaso que a nação alegadamente mais "desenvolvida" se mostre também a mais fóbica em relação às diferenças de Genly Ai. De qualquer forma, é uma obra dos anos 60, e o gênero ainda é visto principalmente em termos de função biológica, com pouca ênfase no contexto cultural do conceito. Mas em Os Despossuídos, de 1974, Le Guin irá se ocupar dessa lacuna. Assunto para um post futuro.

  Tem a ver:

Marune: Alastor 933   

A Terra Longa





Nenhum comentário:

Postar um comentário